O canto das aves em piano e orquestra
Obras de Olivier Messiaen, que hoje e amanhã podem ser escutadas em Lisboa, reproduzem as vocalizações das aves canoras japonesas. Ornitólogo, o compositor francês iniciava as partituras com uma descrição dos habitats naturais
As frequências são mais baixas e o ritmo um pouco mais lento, mais humano. A música do compositor francês Olivier Messiaen não é apenas uma melodia agradável, que nos lembra os trinados das aves. É o próprio canto "dos primeiros músicos da Terra", traduzido em partituras, e pode ser ouvido, hoje e amanhã, em Lisboa.Quando o músico é também um amante da natureza, a arte e a ciência confundem-se, o que acontecia frequentemente nos cadernos de notas onde Messiaen (1908 - 1992) guardava o que via e ouvia quando estava no campo a observar aves. Nas mesmas folhas onde registava a localização, a hora do dia, o estado do tempo e a vegetação do lugar - aos quais chamava a "poesia do canto", o compositor traduzia para escrita musical, com "rigor e exactidão científica", as melodias que ouvia. A peça que a pianista Ana Telles Antunes e a Orquestra Metropolitana de Lisboa tocam hoje, na Sociedade de Geografia de Lisboa, e amanhã no Palácio Nacional de Queluz, chama-se "Sept Haïkaï" [Sete Haikai] e é inspirada pelas aves do Japão. Olivier Messiaen era um homem profundamente crente. Compôs muita obras de inspiração religiosa e foi organista da igreja La Trinité, em Paris, durante cinquenta anos. No entanto, longe de lhe limitar o alcance, esta religiosidade foi uma fonte de ideias metafísicas que conduziram a grandes inovações musicais e muitos dos grandes talentos do século XX, como Stockhausen e Xenakis, procuraram as suas aulas, primeiro na École Normale de Musique e depois no Conservatório de Paris. Ana Telles Antunes é pianista, mas podia ter sido bióloga. Tinha 19 anos quando ouviu a música de Messiaen pela primeira vez, por sugestão de um professor que lhe conhecia o gosto pela ornitologia, e desde aí compreendeu que é possível transmitir através da música o gosto pela natureza: "A intenção é trazer a música às pessoas e utilizá-la como um alerta, para estimular o gosto pelas coisas mais naturais, menos mundanas."A música de Messiaen tem um aspecto gráfico muito diferente do habitual e, embora os símbolos sejam os mesmos, a escrita é audaz. Nas suas obras sobre o canto das aves - como o "Catalogue d'oiseaux", em que retratou as aves de França com a ajuda de ornitólogos profissionais, especialistas nos diferentes habitats do território - é frequente encontrar no início da partitura uma descrição metódica da ave protagonista e do seu habitat, como se fossem as indicações de cena de uma peça teatral da natureza.À medida que se avança na música, vão surgindo na pauta outros apontamentos, como a hora do dia, o estado do tempo, ou qualquer outro aspecto que ajude o executor a apreender o espírito da representação. Messiaen escreveu muitas peças de piano para Yvonne Loriod, a sua segunda mulher, que o acompanhava também nas saídas de campo, por vezes carregando um gravador para registar os sons das aves que encontravam. Ana Telles Antunes tem tido o "privilégio" de estudar com Loriod, que era bastante mais nova do que Messiaen e vive ainda em Paris, aos 75 anos. "Ela é um repositório vivo de informação", explica a pianista, "além de ter partilhado das observações e da criação, já tocou estas obras centenas de vezes".A oferta de um dos discos em que Messiaen tinha gravado os cantos das aves do Japão foi um momento de grande emoção e "fundamental" para a interpretação que Ana fará de "Sept Haïkaï": "Eu não conheço as aves do Japão, e depois de ouvir aquelas gravações compreendi doutra forma as indicações que estão na partitura".A pianista é ela própria uma entusiasta do estudo das aves e acredita que a experiência de campo é muito importante para a interpretação destes temas: "O compositor tem uma ideia, mas assim que essa obra é passada para o papel já está a ser reduzida a um sistema, neste caso a notação musical". É então que a vivência dos ambientes permite uma recriação mais próxima do autor e da realidade.A peça "Sept Haïkaï" é um conjunto de sete andamentos curtos, inspirados nas impressões que Messiaen recolheu no Japão em 1962. O haikai é uma forma poética japonesa que remonta ao século XVI e traduz habitualmente uma imagem da natureza, ou um aspecto simples do quotidiano. Tem uma métrica certa de 5, 7, 5 sílabas, números primos em simetria palindrómica, ou seja, que se lêem da mesma maneira nos dois sentidos, como a palavra ovo. À semelhança de muitos matemáticos, Messiaen também sentia um fascínio especial pelos números primos, que gostava de manipular nas suas composições.Para esta apresentação, Ana Telles Antunes preparou-se intensivamente e, durante os últimos quatro meses, absorveu tudo o que conseguiu encontrar sobre o país do sol nascente. Tudo para, numa pequena introdução, poder partilhar com o público algumas das imagens que construiu, antes de soltar do piano a verdadeira musicalidade da natureza do Japão.