Os Calexico contaram uma anedota
Na primeira apresentação ao vivo em Portugal dos Calexico, domingo, no Paradise Garage, em Lisboa, integrada na programação do festival Super Rock Super Bock, a ilusão foi perfeita. Um programa de variedades ao qual nem sequer faltou Paulo Bragança na pele de um cowboy. Shannon Wright sangrou na primeira parte. Ela e o grupo são amigos e tocaram juntos, mas entre a cantina mariachi dos Calexico e a fome de tudo de Shannon a diferença é abissal.Fomos moldados pela história para acreditar que o rock é uma forma de rebelião juvenil. Coisa que ele, hoje, e salvo raras e honrosas excepções, não é. Sem levar sequer em conta o facto de dificilmente qualquer tipo de rebelião ser compatível com o ruído das caixas registadoras, o rock é nos dias que correm uma gigantesca fábrica de ilusões.O bom rocker é o bom ilusionista, capaz de manejar com habilidade os diferentes imaginários, simbologias e citações que sobraram quer das décadas douradas de 50 e 60, quer das posteriores (des)orientações. Melhor ainda se conseguir fazer o público entrar na ilusão, dos ingénuos que realmente acreditam, aos que do rock apenas pretendem retirar o máximo gozo possível.Tudo isto vem a propósito da estreia ao vivo em Portugal dos norte-americanos Calexico, nativos do Tucson, Arizona, região fronteiriça com o México. O que a banda de Joey Burns e John Convertino apresentou no passado domingo, no Paradise Garage, em Lisboa, foi uma divertida mistificação, sitcom musical de sombrero na cabeça e copo de tequila na mão. Os Calexico são os pistoleiros da "Patrulha Perdida" de Sam Peckinpah, uma banda sonora de Ennio Morricone, um disparo de Lucky Luke mais lento que a própria sombra, uma bebedeira no pátio das traseiras de um saloon chunga.A autenticidade da sua música, presente em álbuns como "The Hot Rail" e canções como "El picador", "Ballad of cable hogue", "Service and repair" ou "Crystal frontier", é a da acuidade da anedota. No Paradise, ouviram-se trompetes mariachi - tornados imagem de marca do estilo Calexico - crooning chicano e Leonard coheniano, uma pedal steel (por um elemento dos Lambchop) e um vibrafone a sustentarem a ressaca e, acima de tudo, o tal rock que aprendeu a vivissecar os lugares e as memórias. Quando, a meio do concerto, Paulo Bragança subiu ao palco e se juntou aos Calexico (seus confessos admiradores, bem como do fado em geral), vestido de fadista-cowboy, para esganiçar a voz como uma galinha em fuga no primeiro tema e entrar a matar no segundo, castiço, sim, mas com compostura, tudo fez de súbito sentido - a imagem vibrátil da miragem, o sol implacável que torra os cérebros, o fado negro sem sombras, a alucinação, enfim. Um quadro kitsch pintado em cores berrantes para pendurar numa loja dos trezentos.Quando Shannon Wright - que na primeira parte, com uma guitarra, um piano eléctrico e uma voz e palavras em derrocada, recordou que o rock pode ser afinal essa outra coisa chamada catarse emocional - se juntou ao grupo para cantar "I started a joke" (atente-se no título), dos Bee Gees, já a comédia fora assimilada em delírio por todos. Mas, entre tanta fancaria, em pleno bailarico, faltava instalar a dúvida. Mesmo a terminar, os Calexico assanharam-se e desferiram o disparo mortífero, mas este já não de pólvora seca, emaranhando-se num som subitamente denso e ameaçador. Sabe-se como no deserto, à noite, a paisagem é completamente diferente do dia. Pelo menos nos filmes.Na noite de miragens e diversões várias dos Calexico, Shannon Wright fez a diferença. Aos trompetes mariachi do grupo contrapôs, com guitarra e piano, golpes de emoção pura.A dimensão kitsch do universo dos Calexico tornou-se notória com a inclusão de "I started a joke, um tema dos Bee Gees.