Mitos Urbanos
"As cidades, tal como os sonhos, são feitas de desejos e de modas", Italo Calvino"Century City" é a mais recente explosão cultural que se instalou na Tate Modern, em Londres, sob a forma de exposição. Mas chamar exposição a toda uma imensidão de obras é minimizar um pouco o evento. "Century City" explora a relação cultural e criativa de nove grandes metrópoles do mundo nos últimos 100 anos e, num só espaço, analisa os caminhos através dos quais as grandes cidades actuaram como um dinâmico e criativo "melting pot".É uma autêntica digressão pelo apogeu cultural das cidades de Paris, Viena, Moscovo, Lagos, Rio de Janeiro, Tóquio, Nova Iorque, Bombaim e Londres. Todas elas em diferentes períodos que foram cruciais para a sua inovação, não só na pintura e escultura como também na dança, arquitectura, música, cinema e design. Estas urbes foram locais para artistas pioneiros desenvolverem arte moderna. É a celebração de flashes criativos e movimentos artísticos e intelectuais que emergiram e reflectem o contexto das metrópoles.Sendo por natureza locais onde homens e mulheres criam necessidades e afectos, as cidades logo se tornam pólos de criatividade. São sempre marcadas pelas forças da mudança- e esta é a força da cidade. Representa a vida humana na sua plenitude artística, energética e intensa.Visitar a Tate Modern é por si só um acto de culto, mas isso é multiplicado pelo facto de ali estarem reunidas as obras mais marcantes de nove "formigueiros" culturais. Iniciemos então a digressão, com o senão de não podermos, a meio da exposição, descansar num café bem agradável com uma vista fabulosa de Londres.Inicia-se a secção de Moscovo com uma série de cartazes muito marcantes da época. Interventivos, construtivistas, geométricos e bastante influenciadores.São explorados os anos decisivos na história da Rússia que começam com a queda da Dinastia Romanov e com a revolução bolchevique. Artistas com visões extraordinárias aproveitaram a oportunidade para redefinir a arte e as suas regras na sociedade. Esta secção traça a combinação explosiva da revolução artística e política vivida em Moscovo durante estes anos. Em 1917 o artista russo Maiakovski declarou que "as ruas poderão ser os nossos pincéis e as praças as nossas paletas". Para os construtivistas, a geometria e a fotografia ofereceram formas dinâmicas da comunicação em massa. Desenvolveram e conceberam os princípios do Construtivismo, que exprimiam as aspirações sociais de toda uma geração. "Arte para as pessoas! Arte na vida! Fora com a arte como um belo adorno na sórdida vida de rico", proclamavam. Eram estes os slogans de artistas fundadores do Construtivismo, como Vladimir Tatlin e o seu amigo Aleksandr Rodchenko, para uma arte nova e funcional que estaria próxima da produção industrial. A partir de 1922 decidiram dedicar as suas energias quase exclusivamente à arte apelativa - palco, posters e fotografia documental. Para além disso, uma nova linguagem cinematográfica foi inventada por realizadores como Dziga Vertov, com o seu filme "Homem Com Uma Câmara de Filmar", uma montagem sobre a vida urbana em Moscovo que capturava a velocidade e os ritmos maquinais de uma nova era. "Novos artistas numa nova nação, é o que nós somos! Devemos crescer com a nova Nigéria..." Uche OkekePassar da galeria de Moscovo para Lagos é como passar da noite para o dia em meros segundos. A música africana ecoa na sala e sente-se um certo calor proveniente de toda aquela arte colorida. Existe até um painel "tropical kitsch" com várias fotos, revistas e discos da época.No momento da independência da Nigéria, Lagos marcou uma etapa para uma nova identidade africana. Teve uma importância extrema a fundação em 1961 do Club Mbari, por um grupo de artistas nigerianos, escritores, músicos e designers. Lagos era a plataforma para o desenvolvimento experimental formado pelo programa de mudança internacional de Mbari, através das suas exposições, conferências, workshops e produções dramáticas. O Mbari teve uma importância fundamental no nascimento da moderna literatura africana. Com a publicação em 1958 do seu primeiro livro, "Things Fall Apart", um estudo trágico sobre o impacto do colonialismo, Chinua Achebe ganhou o título de "pai do romance africano".A segunda parte da galeria explora a explosão cultural da música popular, fotografia, fotojornalismo e arquitectura. Estão representados os discos de 'King' Sunny Ade e Fela Kuti, como amostra de que a partir de certa altura a música se tornou a actividade principal de toda a fusão de uma tradição suprimida e de uma visão contemporânea. Os músicos contribuíram para uma nova e radical dimensão da "World Music"."Uma cidade cuja vivência imediata é tão urgente que, quando lá estou, perco toda a noção do passado", Kenneth Tynan Ao entrar na galeria de Nova Iorque sente-se uma lufada de ar fresco, mas também que somos dominados por uma avalancha de criatividade e movimentos artísticos. Nova Iorque é sem dúvida uma das cidades do experimentalismo e da arte de fazer performance, como se de um palco se tratasse, e na viragem da década de 60 tornou-se o centro de uma explosão de actividade criativa. No seu coração estava a zona do "Soho", com os seus grandes espaços, armazéns vazios, e os típicos "lofts" apropriados para uma vasta quantidade de performances, e muito bem representados nesta secção. Todos aqueles movimentos repletos de criatividade são ilustrados por fotografias. Foi um tempo de inovação para artistas como Adrian Piper, Trisha Brown, Vitto Acconci, entre outros, que usaram Nova Iorque como um pólo de inspiração. Como forma de expressão, os novos artistas exploraram o vídeo, a fotografia e a performance, numa colaboração permanente entre artistas, bailarinos e músicos. Em contraste com a abordagem socialmente desintegrada e impessoal do "minimalismo", pretenderam reaver o conteúdo humano e social, transportando a arte para o mundo real e permitindo que o ambiente urbano lhes desse formas.Um bom exemplo é um curioso painel-performance de Vito Acconci: todos os dias ele escolhia uma pessoa diferente na rua e seguia-a até onde podia.A arte expressionista de Egon Schiele, Oskar Kokochka e Richard Gerstl, a música de Schoenberg, o jornalismo satírico de Karl Kraus e a arquitectura de Adolf Loos marcam a secção de Viena.A exposição inclui uma sala fantástica com as aguarelas de nus de Egon Shiele, onde a tensão emocional se combina com formas belas e um erotismo que entravam sem precedente na arte "mainstream". E, nos seus retratos, os três artistas pareciam apostados em ir além do visível, para expôr a verdade psicológica dos seus modelos.Viena era uma espécie de "sociedade de café", na qual pequenos grupos se juntavam para discutir os seus pontos de inspiração favoritos. A psicanálise de Sigmund Freud foi a maior inspiração para os romances e peças de Robert Musil, Artur Schnitzler e Karl Kraus, escritores também activos enquanto editores de jornais socialmente críticos. Kraus era exímio a usar uma linguagem satírica.A arquitectura de Otto Wagner e de Adolf Loos encarnava um novo espírito que rejeitava o excesso de decoração. O funcionalismo e a simplicidade dos seus prédios contrastava com as fachadas bastante ornamentadas do século XIX em Viena."Aqui, cada descoberta é intensa e frágil", Roland Barthes Passados mais de vinte anos sobre o fim da Segunda Guerra, o Japão estava pronto para sofrer mudanças dramáticas. Foi um período-chave, no qual grupos como Provoke e Mono-ha propuseram estratégias para uma nova arte radical.O grupo Provoke fundou uma revista com o mesmo nome. Era mais do que uma revista de fotografia. Tratava-se de uma junção de imagens criativas com texto, destinada a induzir um pensamento provocador. O movimento Mono-ha, originado pelos artistas Sekine Nobuo e Lee Ufan, também foi bastante importante. Cépticos em relação à forma de fazer pintura e escultura, defendiam gestos artísticos e formas de envolver materiais para revelar o mundo como ele era.Numa atmosfera de protesto cultural, artistas como Yoko Ono e Yayoi Kusama reflectiram o impacto do feminismo, ao passo que Isozaki Arata sugeria uma nova arquitectura. O boom da construção no final dos anos 60 e início dos anos 70 foi marcado por grandes projectos que negligenciavam as consequências sociais e ambientais. Devido ao problema do crescimento populacional, alguns arquitectos foram levados a centrarem-se nas habitações particulares. Os grupos radicais de teatro organizaram pontos de encontro tradicionais num esforço para desenvolverem uma comunicação próxima com a sociedade em geral, organizando espectáculos e performances em pequenos espaços, tendas e até na rua. Posters concebidos por designers conscienciosos tornaram-se manifestos para a campanha de teatro e eram vistos como parte integrante da performance.O cubismo de Picasso e Braque misturado com a música de Stravinsky e a dança do Ballet Russo definem a secção de Paris. No início do século XX, Paris estabeleceu-se como o centro artístico e intelectual da Europa, começando com a explosão do fauvismo liderada por Matisse. Os fauvistas usavam cores intensas como forma de expressão. Era mais do que tentar representar o mundo de um modo naturalista, como o próprio Matisse referia: "quando eu uso verde não quer dizer relva".A exposição mostra a progressão de diversas actividades vanguardistas que passam pelo cubismo e pelo trabalho de artistas que foram mais tarde sinónimo do movimento futurista.Artistas, escritores, poetas e coleccionadores conheceram-se em estúdios de arte, como o famoso Bâteau-Lavoir, e em cafés e bares de Montmartre e Montparnasse para discutirem novas visões e ideias. Picasso e Braque começaram a juntar detritos da vida urbana nos seus trabalhos, fazendo colagens cubistas e construções usando papel de jornal, pedaços de papel de parede, cordéis, cartolinas e fragmentos de materiais.Através deste método, incorporaram a realidade urbana no seu trabalho, criando uma forma de arte capaz de expressar as sensações e texturas da vida contemporânea.Poetas e músicos também inventaram novas formas para exprimir ritmos da cidade. Na sala da exposição ouvem-se músicas da época, incluindo Igor Stravinsky. Impossível não falar do design, música e do Ballet Russo fundado pelo empresário Sergei Diaghilev, um russo que se mudou para Paris em 1909. "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela a garota..." É ao som da bossa nova que se visita a galeria do Rio de Janeiro, uma cidade que foi o símbolo dos anos 50 e 60. O nascer da bossa nova, a geometria do concretismo e neoconcretismo de Hélio Oiticica e Lygia Clark vão ao encontro da linguagem universal da arte, do cinema novo e da arquitectura de Niemeyer. Uma convergência de acontecimentos que agitaram a cidade.Os artistas neoconcretistas desenvolveram uma aproximação à pintura abstracta e à escultura. Os seus trabalhos têm um grande impacto sensorial, para além das cores fortes e do uso dinâmico do espaço. Lygia Clark criou esculturas usando pedaços de metal articulados em três dimensões. O artista e pensador Hélio Oiticica teve também um papel crucial ao conseguir reflectir com profundidade a respeito da arte, invenção e liberdade na sociedade contemporânea. A Bossa Nova resultou de uma rigorosa combinação de uma série de elementos musicais que incluem samba, bebop, música clássica e cool jazz, e que marcaram toda a época. A arquitectura também constituiu uma chave fundamental no Rio de Janeiro. O arquitecto suíço Le Corbusier influenciou toda uma geração de arquitectos brasileiros, entre eles o notável Oscar Niemeyer, que desenvolveu um estilo singular, combinação de modernismo internacional e de um estilo muito brasileiro. Esta secção mostra a cultura visual da Índia dominante e inclui fotografia, arquitectura, vídeo e filmes produzidos na cidade e sobre ela na última década do século passado.Destaque para Buphen Khakhar, um dos mais importantes artistas indianos contemporâneos. A simplicidade dos seus desenhos, óleos e aguarelas é considerada fundamental na arte popular indiana desde 1980.Incontornável é a famosa indústria cinematográfica, que encena numerosas alegorias de sobrevivência na cidade. Histórias melodramáticas de fé, corrupção e amor - a receita para os filmes de Bollywood. Ajudaram - e ajudam -a mediatizar a vida real e a angústia da transição do rural para o urbano, do feudal para o capitalista e da economia local para a global. Há três espantosos painéis concebidos como cenários de filmes indianos em forma de persiana, e vários fotógrafos examinaram com um olhar clínico a multidão de comunidades que fazem de Bombaim uma cidade cosmopolita. "Londres vai para além de qualquer limite ou convenção. É ilimitada", Peter AckroydNo final do século XX, a revista "Newsweek" proclamou Londres como "a cidade mais cool do mundo" - e é essa a imagem dada pela exposição. Nesta secção assiste-se ao desfile de numerosos artistas, designers, estilistas, fotógrafos, realizadores de cinema e activistas que aproveitaram a própria cidade como assunto do seu trabalho, definindo uma estética que funde o estilo de rua, diversidade cultural e quotidiano.Um misto de painéis, fotografias, instalações e objectos de arte pop espalhados por toda a sala definem uma parafernália de obras distintas que caracterizam Londres nesta época.Henry Bond fotografou a cidade de uma forma fantástica, explorando a cor e a ambiguidade da imagem. Tord Boontie tornou a criação de mobiliário num acto político, reciclando pedaços de madeira encontrados no lixo e publicando instruções nas quais convidava o público a fazer o mesmo. Tracey Emin e Sarah Lucas trouxeram a arte para as ruas através da abertura da sua própria loja em Bethnal Green onde vendiam o seu trabalho. O espírito cooperativo da cena londrina está reflectido em "Big Blue", um enorme poster de parede onde estão representados mais de 40 artistas. A exposição "Century City: Art and Culture in the Modern Metropolis" está patente na Tate Modern até ao dia 29 de Abril.