Pobre Hamlet, tão bom, tão pontual
Depois do espectáculo, sai a tradução por Mário Cesariny de "Hamlet, Tragédia Cómica", peça brevíssima e esquecida de Luis Buñuel. Para ler em voz alta, a começar pelo elogio fúnebre que faz Margarida:
Foi na cave do café Select, em Montparnasse, que Luís Buñuel encenou, com alguns amigos, uma curta peça: os quatro actos (sete cenas) de "Hamlet, Tragédia Cómica", talvez o primeiro texto do teatro surrealista espanhol. Estava-se em 1927, há dois anos que Buñuel tinha trocado Madrid por Paris e faltavam outros dois para a estreia de "Un Chien Andalou" - a meio caminho, portanto, entre a Residência de Estudantes onde conheceu Lorca e Dali e a adesão ao grupo de Breton. Buñuel, além de autor e encenador, foi também Hamlet. Em Madrid tinha já interpretado o protagonista do "Don Juan Tenorio", de Zorrilla (peça que voltaria a encenar em 1960, no México, imediatamente antes de voltar a Espanha para rodar "Viridiana").Que se saiba, este "Hamlet" só voltou a ser representado no ano passado, em Portugal, numa (muito divertida e inteligente) encenação de Ricardo Aibéo para o Teatro do Bairro Alto. O espectáculo, que recorria com frequência à filmografia do autor ("L'Age d'Or" em especial) num palco enorme a lembrar um estúdio de cinema, teve por base a tradução de Mário Cesariny agora publicada.A lógica do texto, já se esperava, é a do sonho e da associação livre. Logo na primeira cena, Agrifonte pergunta ao seu rival Hamlet por Margarida; e é certamente porque esta é personagem do "Fausto" (o drama de Goethe e a ópera de Gounod) que Hamlet a caracteriza como "infausta e abaritonada". É a surpresa da linguagem o que se procura e encontra a cada passo, desde o "desusado adjectivo" (em combinações como "tíbios prados", "maquilhada ira", "activos bigodes", "luzes solúveis" ou "golfinho numismático") ao advérbio delirante ("As sombras lutam metafisicamente", Margarida "limpa arbitrariamente as tranças", D. Lupo fica "decentemente ensanguentado").Shakespeare, aqui, é pretextual, mas a sua presença não se limita ao título e ao protagonista. "Ter ou haver a podridão é essa" é a fórmula que condensa o inevitável "Ser ou não ser" com "Algo está podre no reino da Dinamarca". Também existe o fantasma do pai, que em Shakespeare é o motor da acção e, em Buñuel, continua a ser, nas palavras de Agrifonte, "o bom pai que te deu esta história". Mas este espectro, quando finalmente aparece a fechar o Acto III, não é capaz de mais do que um anticlimático "Senhores, a comida está na mesa". E se em Shakespeare a trama é edipiana e incestuosa, aqui é narcísica e andrógina: a amada de Hamlet, descobre-se no fim, "a desejada Letícia, a dos seios asseados, não é outrem senão o próprio Hamlet".Um aspecto central desta peça é o seu lado lúdico, infantil (Hamlet salta para o "barroco cavalinho de cartão"). Há o gozo do disfarce e do "nonsense" mas também o prazer de manipular os materiais da tradição. As crianças gostam de partir os brinquedos dos outros e não deixa de haver um programa: expor, destruindo, as convenções do drama burguês, os seus lugares-comuns. Como quando Margarida, num bucólico prado, diz sem interrupção: "Se ao menos Hamlet, o bem-amado, estivesse aqui. Mas ei-lo que chega." Ou então veja-se, através das didascálias, a melodramática progressão de Agrifonte reagindo ao que diz o Contertúlio (Acto III, Cena I): primeiro "estranhando", depois "ruge de cólera", a seguir "como doido", ainda "dá um iníquo pontapé" e, finalmente, "iluminado", exclama "Então ainda é tempo." O registo dominante é o da paródia.Noutros passos, a própria noção de indicação cénica é subvertida. Como nota Ricardo Aibéo no programa do espectáculo, Mitríades "ser 'levado pelo revolto caule do dia' não se faz". É a literatura que, insidiosa, vem perturbar a operatividade das didascálias. À margem, note-se que algo de semelhante acontece, cinquenta anos depois, noutra reescrita de "Hamlet", tão diferente e ao mesmo tempo tão parecida: na "Máquina-Hamlet", de Heiner Müller, o "cancro no peito [de Ofélia] brilha como um sol".Texto-brinquedo, é decerto difícil materializar, em cena, um espaço que é verbal de forma consciente, onde uma paisagem vazia lembra um particípio. Mas é isso, afinal, o que faz "Un Chien Andalou", quando dá imagens físicas a figuras de retórica. Na peça, Hamlet e Agrifonte "açulam as suas sombras como a lebréus" contra Mitríades. Esta comparação entre a sombra e o cão, o tal que não aparece no filme, faz-se corpo. O que permite, pouco depois, que a sombra de Hamlet ladre à lua - lua que, no filme, ao ser atravessada por uma fina nuvem, é mesmo um olho cortado por uma navalha.