Louis I. Kahn "O que é ser um tijolo"
Na passada terça-feira, dia 20, Louis Isadore Kahn teria feito 100 anos. Assinalar a data é pretexto para recordar como este americano, mestre da arquitectura do século XX, foi capaz de nos fascinar com a sua paixão pela cultura clássica mediterrânica.
Lembremos como, no momento em que o centro da cultura dominante se deslocava para a América do Norte, Louis Isadore Kahn foi capaz de mergulhar na Roma das estruturas de tijolo dos grandes edifícios clássicos, das basílicas, dos panteões, coliseus e termas. Como, quando se banalizava a cortina de vidro do Estilo Internacional, ele se virou instintivamente para a Europa e para as suas fontes arcaicas, para descobrir luz, matéria e desejo: "É sempre um desafio quando o homem aspira ir para além do funcional. Aqui [nas ruínas das termas de Caracala] havia a vontade de construir uma abóboda de 100 pés de altura sob a qual se pudesse tomar banho. Oito pés teriam sido suficientes. Agora, mesmo em ruína, é maravilhoso."E afirmemos: a experiência arquitectónica de Louis I. Kahn constitui um caso único na história da arquitectura do século XX. Kahn é não só a figura crucial na transição da arquitectura norte-americana dos anos 50, como de todo o panorama internacional na sua evolução da tradição do Movimento Moderno para a denominada situação pós-moderna.Kahn introduziu a questão da monumentalidade, matéria herética para o Movimento Moderno, de um modo inédito: enfatizando o carácter do elemento tectónico, do valor construtivo do material. Ancorando-se nas fontes da cultura mediterrânica, interpretou em linguagem contemporânea as formas intemporais da antiguidade. Seduzido pelas origens míticas dos espaços colectivos, soube ler criativamente a História e a partir daí redescobrir um valor permanente nesses monumentos da comunidade resgatando o sentido público de lugar. Actualizou figuras-chave da arquitectura clássica como a planta centralizada. Elaborou uma obra e uma doutrina impressionantes. Exprimindo as suas ideias de um modo original, colocando questões como "O que quer ser um tijolo" ou ainda "O interior de uma coluna contém uma promessa?", construiu uma linguagem pessoal para explicitar as suas posições teóricas, que aparecem frequentemente como filosóficas, poéticas ou mesmo místicas. Afastando-se dos dogmas em vigor na modernidade da época, Kahn rompe com a utilização sistemática do espaço fluido e do estilo Internacional inventados pelos mestres da arquitectura moderna, e reintroduz o sentido do ritual e os valores de solenidade. Para isso hierarquiza espaços e volumes.Quem entra num edifício de Kahn, percebe que está no hall de entrada e que vai passar ao espaço principal, e que as zonas de serviço não têm que ser enfatizadas. Louis Isadore Kahn clarificou a essência de cada parte que compõe um edifício.Louis Isadore Kahn nasceu a 20 de Fevereiro de 1901 na ilha Báltica de Osel que naquele tempo pertencia à Rússia (hoje Saarema, na Estónia). Cresceu no seio de uma família judia que, empenhada em transformar a sua sorte precária, emigra em 1905 para o Estados Unidos estabelecendo-se em Filadélfia. Aos três anos de idade, um acidente desfigura-lhe o rosto e as mãos. Dois anos mais tarde, a escarlatina altera-lhe definitivamente a voz e atrasa a sua entrada na escola. Estes foram os factores que contribuíram para determinar um destino especial num contexto familiar pobre, mas apostado em preservar uma dignidade cultural referenciada às suas origens europeias. Marginalizado pela crueldade infantil, o pequeno Louis recebe os favores dos professores que cedo admiram a sua aptidão para o desenho, ao mesmo tempo que ele revela um instintivo talento para a música.Kahn escolhe ser pintor, mas o fascínio que as aulas de História da Arquitectura lhe provocaram no último ano do liceu acabaram por levá-lo a inscrever-se em Arquitectura na Universidade de Pennsylvania. Em 1928, quatro anos depois de se formar, viaja durante um ano pela Europa. Visita e desenha os templos da Magna Grécia e as cidades toscanas. Começa a definir a sua filosofia baseada na luz e nos materiais que ele acreditava deverem reflectir valores atemporais, o absoluto e o eterno: "O arquitecto deve sempre começar com os olhos postos na melhor arquitectura do passado." Em 1950, Kahn regressa a Itália para uma estadia romana, iniciando o que viria a ser um novo ciclo na sua vida: o período da crescente glória que o alimenta até 1974, ano da sua morte.Começa por trabalhar com Paul Cret, seu professor, que introduziu em Filadélfia os códigos rigorosos das Beaux Arts parisienses. Em 1937, abre o seu atelier, associando-se quatro anos mais tarde a George Howe com quem desenvolve diversos projectos de conjuntos habitacionais e urbanismo. Autonomiza-se em 1947 e torna-se "visiting professor" em Yale, onde encontra um ambiente intenso e estimulante. Para além da forte relação iniciada com o jovem historiador Vincent Scully, que será um divulgador da sua obra, Louis Kahn recebe a sua primeira grande e prestigiante encomenda: o projecto da Galeria de Arte da Universidade, obra que marcou o arranque do seu estilo pessoal e que revelou ao mundo o seu talento singular. Na verdade, Kahn viveu cinquenta anos e trabalhou como arquitecto cerca de um quarto de século até ser descoberto pela fama. Com a obra de Yale descobre-se a estrutura, o poder e a plasticidade dos materiais, e sobretudo a potencialidade das formas que o arquitecto era capaz de criar. Nos Laboratórios Richards, em Filadélfia, para além de aperfeiçoar a questão da luz e da integração de elementos estruturais e utilitários, clarifica a diferença entre espaços servidos e servidores - tema que desenvolverá no magnífico Salk Institute, na Cilfórnia, organizado em torno de um pátio frente ao Oceano Pacífico, considerado o testamento da sua máxima: "Order is".Protagonista da grande metamorfose da arquitectura americana, depois de uma década de cortina de vidro, com Kahn redescobria-se a poética das formas e de uma certa arquitectura-escultura. Ao mecanismo da obra de Mies Van Der Rohe, opunha-se um historicismo baseado num apelo transcendente à matéria, ao sentido da massa e da espessura. A sua fama não parava de crescer e a sua obra começava a ser divulgada.Em 1955, Kahn torna-se professor da Universidade de Pennsylvannia. No início dos anos sessenta, dois jovens arquitectos portugueses estudarão e trabalharão com ele: primeiro Raul Hestnes Ferreira (para o que bastará recordar a Casa de Cultura de Beja ou o Liceu de Benfica para entender a dimensão desta influência - ver depoimento) e depois Manuel Vicente (que, para além de revelar valores de hierarquia e rigor geométrico nas suas obras, integrou profundamente a sua filosofia ).A partir de 1960 e até 1974, Kahn realizará uma obra espantosa. Começa a trabalhar no sub-continente indiano, realizando obras de escala e transcendência ímpares: o centro governamental com o seu Capitólio em Dhaka no Paquistão (actual Bangladesh) e o Instituto Indiano de Administração em Ahmedabad na Índia. Perseguindo com rigor a sua filosofia, o arquitecto desenvolve uma tecnologia voluntariamente frugal para se adaptar aos meios locais tirando partido de um material base, o tijolo: longos muros despojados, cintados por baias circulares ou arcos definidos por tirantes em betão, organizados em volumes muito simples.Dhaka é uma cidadela parlamentária realizada como uma fortaleza de cubos e cilindros de betão perfurados por círculos e triângulos. Os critérios de axialidade, hierarquia, ordem, e regularidade de Kahn atingem a síntese através da composição com uma peça central e outras periféricas e autónomas com ela articuladas. A ordem da geometria é dominante mesmo nas formas escolhidas: ligadas à perfeição do círculo/esfera e cilindro, nas peças mais significativas, e às formas prismáticas, nas peças mais funcionais ou de serviços. Ao dogma racionalista da fluidez de espaço, Louis Kahn contrapõe o tratamento diferenciado, compondo o edifício em partes autónomas. Nas suas obras indianas, também se revela inequivocamente outro momento essencial: o processo de construção.Kahn constrói entendendo que existe uma ordem no tijolo (o arco) e uma ordem no betão (a arquitrave). Que cada material tem a sua própria lógica construtiva, que deve ser exposta. Por isso a sua arquitectura é mais tectónica que visual: "A monumentalidade em arquitectura pode definir-se como uma qualidade, uma qualidade inerente a uma estrutura que transmite a sensação da sua eternidade, de que não se pode acrescentar ou mudar nada." Finalmente, as fundações de Kahn no desenho clássico enfatizam o grande mistério da luz: "Habituei-me a pensar em termos de silêncio e de luz." Kahn queria agarrá-la: "Uma abóboda, uma cúpula são uma eleição do tipo de luz que se quer. Fazer um quarto quadrado significa dar-lhe aquele tipo de luz que revela o cubo nas suas infinitas modulações... Falando arquitectonicamente, nenhum espaço é um espaço se não recebe luz natural."As suas obras posteriores nos Estados Unidos perseguem esta evolução: a biblioteca de Exeter, por exemplo, evoca as ruínas romanas com os seus gigantescos óculos de betão abertos nas faces do pátio luminoso.Kahn não é adepto da construção convencional, obrigando os seus engenheiros a inovar, a enriquecer a arquitectura com novas soluções estruturais. Com ele, as formas antigas, como a abóboda de canhão no Museu Kimbell em Fort Worth, recebem novos desenvolvimentos com utilizações insuspeitadas. No Centro de Arte Britânica de Yale, um prisma urbano de betão, vidro e aço com as salas do museu em torno de dois pátios desenvolvidos com rigor exemplar faz a síntese perfeita do espaço, do sentido da construção, dos materiais e das formas, das matérias e da luz.Reconhecido como um dos mestres da arquitectura do século XX, Louis Kahn recebeu diversas distinções. No Arquivo da Universidade de Pensilvânia está depositada em permanência a Louis I. Kahn Collection, um espólio de mais de duzentos projectos: 100 maquetas, 6.363 desenhos da sua autoria, fotografias, slides, correspondência, biblioteca pessoal, prémios e medalhas doados pela sua família. A revisão essencial da sua obra e teoria fez-se há uma década quando foi concluída a investigação realizada a partir deste monumental arquivo. Concebido para acompanhar a exposição que, entre 1991 e 1994, viajou por sete museus de três continentes (América, Europa e Ásia), o magnífico catálogo da sua obra ("Louis I. Kahn, In the Realm of Architecture", coordenado por David B. Bownlee e David G. De Long e editado pela Rizzoli, 1991) constitui a obra de referência para entender a obra e o homem. Em 2000, uma grande exposição no Moma, em Nova Iorque, fazia um balanço do século através das diversas áreas da criação e dedicava a Kahn o lugar maior da produção arquitectónica do século XX. Kahn procurou uma relação intensa com a arquitectura enquanto disciplina rigorosa, fonte de força, beleza e plenitude. Por isso soube olhar a História e reinterpretá-la, atingindo uma das mais sugestivas sínteses entre modernidade e tradição, entre uso da técnica e da memória. Tal como afirmou, um dia: "O artista busca apenas a verdade e o que é tradicional ou moderno não tem qualquer sentido para ele."