A morte fica-lhes bem
Em "Cinco Moscas Azuis" há três crimes de alta roda, muitas pistas incertas e um assassino que não sabe se há-de rir, se chorar. Carmen Posadas disseca o "jet set" madrileno com sadismo e humor.
Em entrevista ao PÚBLICO (Leituras, 20/11/99), a propósito do lançamento em Portugal de «Pequenas Infâmias», Prémio Planeta 1998, Carmen Posadas confessou encarar o assassínio como uma das belas-artes. "Cinco Moscas Azuis", o seu primeiro romance (de 1996; antes, tinha publicado contos infantis), é um ensaio para o crime perfeito a que todos os assassinos, entre eles os autores policiais, aspiram nobremente. Já lá estão as infâmias, já lá estão as falsas pistas que se bifurcam como caminhos borgesianos, já lá estão personagens snobes e pífias que parecem extraídas da "Hola!" e a quem a morte assenta que nem luva. Espanhola nascida no Uruguai, com 47 anos de itinerância por vários continentes, multiculta e bem-posta na vida, a escritora disseca a sua classe com a paixão minuciosa do anatomista que adora o seu ofício.Rafael Molinet, cinquentão homossexual e neurasténico, recém-órfão de uma mãe idolatrada e herdeiro sem um chavo no bolso, decide passar férias milionárias numa estância termal de Marrocos antes de se matar com soporíferos. L'Hirondelle d'Or, a cem quilómetros de Fez, é um desses hotéis de luxo perdidos no deserto para onde só vai quem deseje estar só, escondido e sossegado. Segundo o folheto turístico, Martin Amis refugiou-se num dos seus quartos personalizados para concluir um romance e Mick Jagger rendeu-se à sua cozinha dietética para se recompor de uma digressão com os Rolling Stones. Rafamolinet não escreve nem canta (na verdade, não faz nada), não é nenhuma celebridade perseguida pelos "paparazzi", mas quer estar solitário, anónimo e longe do grande mundo para cumprir o acto final. Logo à chegada, topa com uma viúva quarentona e rica de quem "toda Madrid" fala e que ainda na véspera fora pasto de bisbilhotice entre ele e uma sobrinha, num restaurante londrino. Depois, chegam outros espanhóis, conhecidos da viúva, com os seus "arranjinhos" de fim-de-semana e com tanta raiva de a encontrar ali como ela a eles. Por fim, aparece o cineasta mais na berra em Espanha, jovem e galante, que "se arranja" com a viúva.Tudo "gente rica, gente bonita, gente famosa", entre uns banais turistas belgas e alemães para compor a figuração. Uns tomam banhos de lama, outros nadam na piscina de águas turquesa, joga-se golfe ou passeia-se no jardim, uns e outras fazem amor, os empregados conseguem o milagre de aliar solicitude e discrição e a directora suíça zela invisivelmente pelo mecanismo de relojoaria do estabelecimento. Quanto a Rafael, que ninguém conhece, observa, escuta e perscruta, assim ficando a conhecer toda a gente, conhecimento aprofundado pelas informações que a sobrinha, mexeriqueira da melhor escola, lhe envia por fax.À vista do leitor, só há uma morte: Antonio Sánchez, jornalista famoso, afoga-se "acidentalmente" na piscina, a tempo de não enviar para uma revista um artigo em que se prepara para destruir a viúva, insinuando venenosamente que a sua viuvez é voluntária e alegre. Quarenta anos atrás, ocorrera um caso semelhante, no qual a viúva era a mãe Molinet, vítima inocente das más-línguas, pois que o "acidente" mortal do marido tivera por detrás o dedinho do filho... Pode um perfeccionista maníaco suportar que o mesmo engano se repita duas vezes? Deve um pré-suicida esteta permitir que um velhaco de careca oleosa esfole viva uma mulher bonita? "Um quase morto é como Deus (...) e um deus tem poder para mudar o curso dos acontecimentos e fazer justiça a seu modo", Rafael "dixit". Disse e fez. Igual à criança que guarda umas tantas moscas dentro de um frasco para lhes tratar da sorte.Como sempre, em Carmen Posadas, a narração é muito elegante. O requinte leva-a a abrir cada capítulo com uma citação idónea sobre regras de etiqueta. A descrição das exéquias de gente bem (capítulo "O funeral") é de um humor soberbo. Os achados da "maid connection", ou transmissão via criada, são uma delícia. Os tiques das personagens queques são de um patetismo hilariante. O protagonista é uma "rapariga má" que, de tão, infeliz, até merece simpatia. Como se sabe, as raparigas más vão para toda a parte. A autora tem o bom senso e o bom gosto de não revelar para onde manda esta. Pois no fim aparece uma pulseira Cartier que no princípio estava no braço de outra e que... Chega, não vale recomeçar.