Não Incomodar, por Favor

Progressivamente, a tradição realista do cinema britânico, ancorada na crítica social e num pessimismo endémico, vai cedendo lugar a uma produção mais calorosa. Nascida sob os auspícios de uma indústria com a pretensão de se achar à altura de Hollywood ("Os britânicos sempre tiveram mais gosto do que os americanos quando se trata de filmes", lia-se recentemente no "Times"), a mais recente pulsão criativa "brit" tem-se pautado pela confusão dos géneros, isto é, por um realismo prazenteiro.

"Billy Elliot" é apenas o último dos exemplos. Como em "Os Virtuosos" ("Brassed Off", 1996) de Mark Herman, o pano de fundo é socialmente marcado e historicamente definido - a greve dos mineiros no Nordeste da Inglaterra thatcherista -, mas a causa dos desfavorecidos não dispensa um final feliz. Em "Os Virtuosos", contornava-se o miserabilismo económico com a formação de uma banda filarmónica; em "Billy Elliot" são, de novo, os bons sentimentos que prevalecem: uma pequena comunidade mineira esquece por momentos as duras condições de vida para apoiar um dos seus "filhos" bafejado pela sorte.

Os ingleses desencantaram o termo correcto para a tendência: "feel good cinema". Os registos alternam entre o lacrimejante e o cómico (estamos longe da ironia refinada de Mike Leigh), o realismo assume por vezes a forma de um idealismo mal-disfarçado, a redenção final é um dado adquirido.

Primeira longa-metragem de Stephen Daldry, com uma carreira firmada no teatro (foi director do Royal Court Theatre), "Billy Elliot" abre sob o comando de "Cosmic Dancer", dos T-Rex, com o pequeno Billy (micro-talento Jamie Bell) saltando fora e dentro do plano em "slow motion", contra um papel de parede (o genérico é, muito provavelmente, a melhor sequência do filme) que parece saído directamente da iconografia dos "seventies". Mas está-se em 1984: os mineiros em greve queimam pianos para enfrentar o Inverno rigoroso, Billy vive com o pai, o irmão mais velho e a avó insana (a mãe morreu faz pouco tempo) e pratica boxe, para grande exasperação do treinador ("És uma vergonha para essas luvas e para o teu pai!", diz-lhe) que o obriga a horas extras de exercício. Por causa da greve, uma classe de ballet vem partilhar o ginásio e Billy descobre a sua verdadeira vocação: dançar. É um drama comovedor: a suspeitada virilidade dos bailarinos não é vista com bons olhos pelos representantes do sexo masculino mas, eventualmente, o pai rende-se ao talento do filho depois de uma demonstração que parece mais próxima do folclore céltico do que da técnica Martha Graham. "Tanto quanto sabemos, o rapaz pode ser um génio..." Tanto quanto parece, está longe de sê-lo, mas a interpretação do pequeno Jamie Bell é valorosa. Há sequências coreográficas que lembram Kevin Bacon dançando furiosamente em "Footloose".

Mas "Billy Elliot" não se resume a um "Footloose" pré-adolescente: o tal realismo britânico - os seus "clichés", pelo menos - também faz valer a sua marca, mesmo que não pareça ser levado muito a sério: atente-se no "travelling" em que a pequena Debbie caminha pela rua com Billy arrastando um pau contra o muro e prosseguindo indiferente quando ao muro se sucede uma batalhão de polícias de choque. A greve dos mineiros, que supostamente serviria como denúncia dos rigores de uma Inglaterra submetida ao regime da sra. Thatcher, fornece um contexto meramente acessório. Afinal, a comédia musical que é "Billy Elliot" bate, de longe, o drama envergonhado que (também) é "Billy Elliot".

O maior problema do filme de Daldry residirá, aliás, no argumento de Lee Hall - a realização não é desmerecedora -, demasiado esteriotipado e repleto de boas intenções: veja-se como a questão da homossexualidade é resolvida, delegando o papel de "proto-gay" no amigo de Billy. Todos saem vitoriosos: o objectivo é não incomodar consciências. Mas não será esse um dos fundamentos do "feel good cinema"?

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