Com a colecção em casa
Remontagem da Colecção Berardo, já antes mostrada, "Face-a-Face", patente no Sintra Museu, apresenta obras dos anos 90. Sem que essa fronteira determine um discurso único.
O que se mostra no Sintra Museu/Colecção Berardo é o mesmo do mesmo. A totalidade da Colecção foi apresentada em 2000 no CCB. Seleccionam-se agora as existências relativas às produções dos anos 90. Sem que essa fronteira determine um discurso único.Logo ao topo das escadas que dão acesso ao piso onde o novo conjunto se expõe, as esculturas de Juan Muñoz e de Keith Haring recebem de modos muito diversos os visitantes desta remontagem, em sede própria, da colecção.No piso térreo do antigo Casino de Sintra a exposição segue um percurso já normalizado pelas consagrações da história da arte. Proporciona-se uma amostragem única a nível nacional dos valores individuais ou estilísticos das décadas imediatamente posteriores à primeira guerra mundial e anteriores à década de 80/90 - elementos necessários às bases do ensino liceal e universitário. No andar superior há como que uma desaceleração do tempo e um alargamento dos campos. Exactamente porque nos aproximamos mais dos dias de hoje - a selecção integra obras genericamente realizadas na década passada - esses efeitos de distensão são benéficos, permitindo integrar obras que a actualidade proporciona e impõe, sobre as quais é talvez prematuro aplicar malhas apertadas, mas que a síntese histórica certamente esquecerá.Juan Muñoz refere-se à angústia da existência usando a poderosa metáfora do corpo dependurado e da repetição dos corpos: um grupo de homens tirados do mesmo molde baloiça rente ao tecto ao leve sabor do ar que se desloca com eles dançando as suas terríveis sombras. Não menos forte é a imagem de Haring. Aparentemente alegres, as silhuetas vermelha e amarela, penetrando uma na outra através de um buraco referem esvaziamentos, espectacularidades angústias que o activismo do artista nos movimentos anti-SIDA mais claramente justifica.As salas integram uma regra que torna mais estimulantes e polémicas as montagens actuais - nelas se esboça um confronto de diversidades, se propõe uma temática ou se mostram obras de circulação menos internacional. Depois, as salas do piso integram uma maioria de peças já conhecidas mantendo também uma mais previsível organização: por movimentos, gerações ou nacionalidades - menos sujeita a polémica mas também menos sujeita a surpresa.Cindy Sherman, Jorge Molder e Mariko Mori abrem os leques da auto-representação. Fazem-no entre a tensão dos primeiros (a fotógrafa americana disfarçando-se de uma patética Vivienne Westwood e o português pintando a boca como um palhaço) e a menoridade da popularizada artista japonesa. Também Nan Goldin usa a fotografia como registo de uma máscara nocturna - a dos travesti. No conjunto, apenas a escultura do alemão Stephan Balkenhol parece remeter-nos, no seu arcaísmo, para alguma estabilidade normativa. Na sala à esquerda podemos seguir uma linha de desvios à norma. As pinturas de encenada perversidade infantil (ou exercida sobre a infância), de Nicky Hoberman , o "Yellow Man" de Robin Lowe, a cosmologia escatológica da pintura de Julio Galan ou a sua versão tridimensional na obra "Cock Shitter" dos irmãos Chapman dão-nos uma visão dos interesses de parte da actual arte inglesa e americana. Só na terceira sala da montagem o discurso se enriquece embora sem que nos tirar do campo de uma evidente angústia existencial. É uma sala de citações da morte: das duas fotos de morgue, de Andreas Serrano (suicídio por raticida e morte por pneumonia) a densa abstracção pictórica do inglês Abigail Lane ("Ink Pad I") ou mais duas fotos de Molder - completando a amostragem da aquisição de toda a série de trabalhos que compôs a representação do artista à Bienal de Veneza de 1999. Um rosto onde os olhos cerrados se cobrem de gelo ou um outro onde a boca morde uma corda conduzem-nos para a peça de José Barrias - uma figura nacional incluída na Colecção Berardo, já segundo os critérios de aquisição de Maria Nobre Franco, directora do Museu que substituiu Francisco Capelo na tarefa das aquisições. Barrias apresenta uma teia de aranha construída em fio negro lançando sombras ambíguas sobre o desenho de um olho fechado. O fio mais forte do discurso desta montagem pode ser resumido numa outra peça da colecção, agora ausente mas de grande qualidade e significado metafórico: o poderoso néon de Bruce Naumam onde dois personagens se confrontam.As salas seguintes integram o espírito de obras realizadas no contexto dos anos 90 e maioritariamente por artistas de carreira também recente. Mas ficam já fora do registo mais agudo da novidade e do âmbito desta reorganização da montagem. Uma sala onde Fionna Rae, Sue Williams, Markus Harvey ou Cecily Brown, nos fornecem novas informações referentes à recente pintura britânica e americana numa versão mais cromática e decorativa ou programaticamente mais estimulante que a já visitada. Outra sala, onde a desconcertante betoneira de decoração barroca de Wim Delvoy se confronta com uma não menos desconcertante (no título e na imagem abstracta) pintura de Gary Hume, "My Guernica". O Museu Berardo continua a cumprir as tarefas que lhe foram confiadas. É o único com capacidade para dar ao público nacional uma visão permanente, abreviada que seja, da panorâmica da arte internacional do século passado. É o único com dinâmica (e posses) para renovar e acrescentar a sua colecção segundo os ritmos próprios dos grandes eventos mediáticos. Ao enveredar agora por um maior volume de aquisições de artistas nacionais a colecção vem preencher uma lacuna evidente do seu acervo. Mas a confirmação do interesse renovado da colecção só poderá confirmar-se se for vencida a tendência enciclopédica que enformou a primeira época de aquisições, se Maria Nobre Franco estabelecer uma personalidade interior capaz de se sobrepor aos meros nomes históricos ou das revistas de actualidade artística.