Labirinto fotográfico
Algures entre a autobiografia, o caderno de viagem e a correspondência, "Détours", de Raymond Depardon, é um objecto provocatório e inclassificável.
Quem conhece fotógrafos que trabalham para a imprensa sabe das suas queixas. Frequentemente os títulos em letras garrafais "tapam" as fotografias, esses títulos ou as legendas adulteram-lhes o sentido, os textos são demasiado grandes e não as deixam respirar, os recortes e outras manipulações gráficas são um atentado à sua autenticidade, isto já para não falar da falta de qualidade da impressão.Tendo em vista esta relação difícil, não raras vezes conflituosa, é no mínimo surpreendente o novo livro de uma das mais celebradas referências do sector, "Détours" de Raymond Depardon. Ao longo de 336 páginas, por sinal não numeradas, não há um único original, nem uma só fotografia "pura". Nenhuma das imagens do autor - entre as quais algumas das mais famosas e simbólicas da história do século XX - é apresentada de uma forma dignificante ou coerente com a reivindicação de um estatuto artístico para a fotografia. "Détours" é, na verdade, uma colecção de recortes de imprensa e de cartazes, à mistura com postais e convites. De resto, é um "falso" catálogo de uma "falsa" retrospectiva, que ocupou por inteiro a Maison Européenne de la Photographie, encerrando o do mês da fotografia de Paris, desde o final de Novembro até ao passado dia 4. O festival quis consagrar um fotógrafo de 58 anos de idade, que começou por fotografar starletts, evoluiu para o fotojornalismo e esteve na fundação e dirigiu a agência Gamma(1968-1978), antes de se tornar num dos autores que mais questionaram e renovaram a prática da reportagem. Mas, quando era suposto organizar uma antologia da sua carreira, incluindo das suas incursões no cinema, Depardon optou por concentrar-se nos últimos 20 anos, evitando conscientemente os 20 precedentes. E, no lugar de uma verdadeira retrospectiva, ensaiou uma síntese elíptica de um trabalho que está em curso. Ele próprio esclareceu: "Ainda sou demasiado jovem para retrospectivas. Se tivesse de qualificar esta exposição diria que é um balanço parcial. Sei que alguns prefeririam que eu expusesse fotografias do período fotojornalista. Mas eu prefiro partir dos livros (...) exponho doze livros, livros fundadores, militantes e intimistas" ("Reponses Photo", Nov. 2000).Se "Détours" foi concebida sob o modelo do livro e não da exposição, também o livro lançado em sincronia e já premiado com o prestigiado galardão Nadar se subtrai às expectativas quando é tudo menos um catálogo da exposição. "Não quis lá meter as minhas fotografias", confessou o autor. "Aliás, não as tenho, não as guardo, mas sim aquilo que vou juntando e conservando à volta delas" ("Liberation", 19/1/01). O que junta à volta delas são afinal os tais recortes de imprensa cruzados com memórias escritas, algumas suas sobre as coisas que lhe iam na alma ao fotografar, a maior parte de outras autorias, incluindo desde notícias de jornal até extratos de cartas. Em suma, "Détours", o livro, é qualquer coisa de inclassificável entre a autobiografia, o caderno de viagem e a correspondência. É uma mala de recordações, publicada porém como se se mantivesse privada. Quer isto dizer que é quase impossível de "ler" do princípio ao fim, funciona antes como um objecto de consulta avulsa. Folheia-se com a mesma inconsequência que uma revista, onde se lê um título aqui, uma notícia ali, uma fotografia ou um postal mais à frente, mas sem se vislumbrar um enredo ou qualquer sentido unificador. Será uma obra de puro narcisismo esotérico? Ou um desafio aos modelos adquiridos de percepção da fotografia e dos seus modelos de divulgação?"Détours" é, em qualquer dos casos, coerente com a filosofia de negação do previsível que percorre as últimas duas décadas da carreira do fotógrafo, estratégia deceptiva particularmente evidente na sua constante relação com a escrita. "A imagem de Raymond Depardon não é auto-suficiente", declara Jacques Rancière na introdução à obra, querendo por isto dizer que ela requer a palavra por complemento. E, no entanto: "A palavra que vem juntar-se à imagem que fala por si não é a boa, não é aquela que cola o sentido à imagem ou que, pelo contrário, lhe devolve o seu esplendor mudo. A palavra diz de mais ou de menos. E esta palavra em falta ou em excesso faz-nos ver que a própria imagem diz demasiado ou demasiado pouco."