Premiada a revista missionária que enfrentou a censura
<EM><FONT FACE="Times New Roman" SIZE="4">"ALÉM-MAR" E "AUDÁCIA" RECEBEM PRÉMIO DOS DIREITOS HUMANOS</FONT></EM><STRONG><EM>Informação sobre África, Terceiro Mundo e causas sociais são tónica de revistas missionárias</EM></STRONG>A notícia não saiu em Lisboa - a censura do Estado Novo não a deixava passar - mas foi publicada no Brasil. Relatava assim "O Globo" do dia 16 de Novembro de 1964: "O Governo do primeiro-ministro Oliveira Salazar suspendeu, ontem, por tempo indeterminado a revista católica 'Além-Mar' e confiscou sua edição de Novembro, proibindo-lhe a circulação, por haver publicado um artigo sobre o Congresso Eucarístico Internacional, que será instalado no fim do mês em Bombaim."Foi a primeira grande aventura da revista dos Missionários Combonianos na oposição ao Estado Novo. Mais histórias viriam depois. Mas após a instauração da democracia, a "Além-Mar" não perdeu as causas: o seu jornalismo dá prioridade ao noticiário sobre o Terceiro Mundo ou a problemas sociais como o perdão da dívida dos países pobres - o que se confirma no número de Janeiro, totalmente dedicado à situação em África. Uma atitude que valeu à revista - e à sua congénere para os mais novos, a "Audácia" - o Prémio de Jornalismo 2000 Comandante José Manuel Cabral, atribuído pela Comissão Nacional dos Direitos Humanos e que hoje será entregue numa cerimónia no Palácio Foz, em Lisboa. Dos 1500 contos do prémio, mil destinam-se a pagar a professores de uma missão no Norte do Congo Kinshasa que estão sem ordenado há cinco anos. O restante vai para a reconversão tecnológica da redacção.O jornalista Rogério Nunes recorda-se do tempo em que trabalhava na publicação dos Missionários Combonianos. "Havia uma negociação permanente com os funcionários da censura" e um contínuo jogo de quem a escrevia. Para fazer passar, subliminarmente, mensagens que não fossem perceptíveis à primeira. Um exercício que só começou em 1965, depois da suspensão noticiada por "O Globo". As publicações católicas, entre outras, não eram obrigadas a sujeitar-se à censura prévia, ao contrário dos jornais diários. Foi por causa do texto sobre a viagem do Papa Paulo VI à Índia que a revista passou a ter que sujeitar os seus trabalhos aos homens do lápis azul. É que, três anos antes, as tropas da Índia ocuparam as então colónias portuguesas naquele país. E o ditador não gostou de ver o Papa deslocar-se visitá-lo, ignorando os protestos de Portugal. Na "Além-Mar", o texto não só ousava falar da Índia como se atrevia a dizer que o governo de Nova Deli se esforçava por melhorar a situação social da sua população: "O grande problema (...) é o drama da fome. (...) Em Calecute, (...) todos os dias de manhã os bombeiros passam a recolher os que durante a noite faleceram por falta de um punhado de arroz. Não se exagere, porém, pois lentamente o governo está a debelar o flagelo. Embora a população tenha aumentado, em dez anos [de independência], de 361 para 438 milhões de habitantes, o rendimento individual, a alimentação em calorias e a idade média subiram consideravelmente."Parágrafos como este levaram o Governo de Salazar a impor o silêncio à revista. Que só se voltaria a publicar seis meses depois, em Maio de 1965. A partir daí, começou a aventura quotidiana de enviar os textos à censura e de discutir os cortes com os funcionários do lápis azul. "Às vezes deixavam passar na primeira prova e cortavam na segunda, outras cortavam só por causa do título ou porque se falava em países pouco gratos ao regime português", recorda Rogério Nunes. Mas nem só de razões políticas se faziam as objecções dos censores. Textos ou frases que atentassem contra a moral e os bons costumes também era riscados pelo grosso lápis azul dos zeladores.Hoje, na redacção da "Além-Mar", ainda se guardam, numa gaveta de arquivo, muitos dos textos cortados a azul. Como a entrevista feita pelo então director, o padre Carlos Neves, a D. Hélder Câmara, o bispo brasileiro conhecido na época como "vermelho" e que não passou apenas por causa do nome do entrevistado. Apesar de a conversa se limitar a falar de questões internas da Igreja. Mas as diligências pessoais de Rogério Nunes junto da censura e do Serviço Nacional de Informação (que a tutelava) acabaram nesse caso por resultar. "Pedi para falar com o director do SNI [Clemente Rogeiro], que estava em Paris, mas o secretário assegurou-me que me daria a resposta." E o corte foi levantado nessa mesma tarde, presumivelmente após um telefonema do secretário para o director. Um zelo sem lógica, muitas das vezes. Por causa do título - "Menos armas, menos luxo e mais pão para a fome no mundo" - foi também cortado um texto que falava sobre o flagelo da subnutrição. Como também por causa do título - "Justiça e Paz" - foi riscado um outro que falava sobre a criação do Conselho Pontifício Justiça e Paz. Numa outra notícia, para o número de Dezembro de 1965, citava-se um jornal "sensacionalista" do Sudão que criticava Paulo VI e os missionários católicos que teriam preparado "o berço ao imperialismo". Na primeira vez, o texto passou, na segunda não. Depois da pergunta - "porquê cortar se na primeira prova não o fizeram?" - o corte foi levantado.