Inquietação e utopia
De José Afonso a poesia, de José Mário Branco a vida: dois livros embalados em música, juntos pelo acaso nos alvores do novo século.
Entra-se na livraria e eles ali estão, lado a lado. As fotos reconhecíveis, imediatas, ambos de mão na testa por inesperada coincidência. Sem pose, pelo menos daquelas onde os retratados se esforçam com tal gesto por gritar a sua condição de pensadores: apenas uma fracção de tempo, um lapso de indecisão, um instante de dor. José Afonso na capa de "Textos e Canções", enfim reeditado após longos anos de ausência; e José Mário Branco no segundo volume das biografias MC (inauguradas com Carlos Paredes), que é também o primeiro livro a fazê-lo história.Pegue-se no primeiro. Logo nas páginas de abertura, a organizadora, Elfriede Engelmayer, procura explicar o que mudou entre a edição anterior (Assírio & Alvim, 1988) e a actual. E a explicação vai de encontro aos desejos por ela expressos em estudos diversos: realçar a obra do poeta, que nas outras edições surgia obscurecido pelo cantor. Assim, os textos e poemas que José Afonso não chegou a envolver em música foram agora colocados antes das canções. E por ordem cronológica, embora com falhas: muitas devido a ausência irremediável de datação, outras decerto por lapso. Como "Por aquele caminho" (pág. 92), que além de duplicado na secção "Primeiras canções" (pág. 189), surge entre poemas datados de 1980 e 1982 quando foi escrito nos anos sessenta (Adriano Correia de Oliveira musicou-o em "O Canto e as Armas", de 1969). Com apenas um texto novo, entretanto redescoberto ("O triângulo e a limalha"), esta 3ª edição de "Textos e Canções" tem o mérito de permitir, pela primeira vez, uma leitura cronológica da obra escrita de José Afonso, podendo confrontar nela a evolução da palavra, da métrica, da sonoridade posta em cada sílaba ou verso. E assim avaliar a qualidade poética daquele que muitos conhecem ainda e apenas por cantor. Mas podia ter ido mais além: com um estudo poético-semântico semelhante ao que exemplarmente escreveu Arnaldo Saraiva, em 1977, a propósito das canções de Sérgio Godinho; e com uma bibliografia mais exaustiva, não incluindo apenas livros e estudos académicos (e aqui faltam alguns) mas também textos, entrevistas e recortes de imprensa.Desta falha não padece "O Canto da Inquietação", registo biográfico da vida e da obra do cantor e compositor José Mário Branco. Talvez porque o autor, Octávio Fonseca Silva, na sua dupla condição de músico e crítico de música ("A Memória do Elefante", "Mundo da Canção", RCP, Rádio Nova, Rádio Press), tenha sentido necessidade de conjugar a abundância de fontes (expressa na bibliografia e nas extensas notas finais) com o registo cronológico e factual do percurso do biografado, reconstituído com base em inúmeros documentos, na totalidade da obra gravada e em conversas directas com o próprio e com várias pessoas que o acompanharam ao longo dos anos. O resultado é satisfatório: 45 páginas para biografia e fotos, 45 para carreira e obra (incluindo todos os discos, com capas e fichas completas, analisados um a um), 60 para textos de José Mário Branco e entrevistas publicadas em diversos órgãos de informação, 16 para canções (oito, com as letras e respectivas pautas) e, por fim, 20 para bibliografia e notas. Quem procurar uma data, um registo, um passo de José Mário Branco, vai encontrá-lo nestas páginas. No lugar certo da escala do tempo. Mas dificilmente entrará, com eles, na imensa Floresta Negra da Inquietação sugerida por José Mário (pág. 15), paralelo onírico da Grande Casa Alugada da Infância evocada por José Afonso (pág. 60), onde cabiam todas as ilusões de um futuro por criar. A porta da alma fecha-se às palavras e não deixa que estas lhe revelem os segredos - fronteira que só os sons, no que a José Mário Branco diz respeito, conseguiram até à data romper. À saída da livraria, voltamos a olhar as capas. Os gestos fixados no instante da fotografia, a mão na testa, talvez apelem a algo mais do que o pensamento. Parafraseando José Afonso ("Prosema II, pág. 60), talvez um ancoradouro distante, fora do estreito mundo em que ainda nos movemos. Ou, se como diz José Mário Branco ("Inquietação", pág. 194) não metermos o barco ao mar para ficar pelo caminho, talvez a atracção por essa coisa, linda e imaterializável, chamada utopia.