Fiódor Dostoiévski o homem subterrâneo
Pela primeira vez, traduz-se "Cadernos do Subterrâneo" a partir do original russo. Neles, renasce um discurso destruidor, implacável, que nos devolve a voz da consciência moderna.
"Estranho, áspero e louco", assim definiu Dostoiévski o tom de "Cadernos do Subterrâneo", uma das obras mais perturbadoras de sempre, destinada a deixar marcas e a semear ecos no tempo. Escrita imediatamente antes de "Crime e Castigo", quando o autor velava a mulher moribunda, esta obra marca uma passagem na escrita de Dostoiévski, uma fronteira, um ponto de não regresso que conduzirá irremediavelmente à espiral dos seus grandes romances. Steiner afirmou que nenhum outro texto foi tão marcante, em termos formais, para a modernidade literária. O primeiro livro verdadeiramente dostoievskiano é também aquele a que mais se haveria de voltar. E é o texto em que o "homem subterrâneo", em todas as suas versões passadas e futuras, se irá para sempre reconhecer.A estrutura destes Cadernos reparte-se em duas secções: "O Subterrâneo" e "Por Motivo da Neve Húmida". Numa breve nota inicial, o autor explica ter criado o texto para representar um tipo de homem que não só pode, mas deve existir na sociedade russa. Uma segunda voz autoral, mais imersa no texto, conclui a suposta transcrição dos cadernos antes do seu final, considerando suficiente o retrato desse "homem paradoxal". Existe um jogo de construção do livro enquanto livro, escrito pelo autor e também pela sua personagem. O conteúdo, exceptuando estas duas intervenções, é delegado na primeira pessoa de um narrador que escreve, pensa, dá forma e estrutura a sua criação. Atribui títulos às secções, faz referências internas e prevê as reacções que a leitura pode provocar nos leitores. Trata-se de uma voz (como o título das anteriores traduções portuguesas - "A Voz Subterrânea" - evidenciava) que encena o texto, o livro e o acto de leitura. O seu monólogo é em tudo teatral e dirige-se aos "senhores" que o lêem - ouvindo -, para recriar o monólogo num diálogo incessante, palco das maiores contradições. É um monólogo que cria a sua própria resposta, desmontando-a logo em seguida como invenção, num acto denunciado de "fingimento": "É evidente que todas essas vossas palavras, meus senhores, acabei eu mesmo de inventá-las. Isto também é típico do subterrâneo. Ali escutei eu, quarenta anos de enfiada, através de uma fenda, estas vossas palavras. Fui eu quem as inventou, e foi tudo quanto pude inventar durante tanto tempo. (...) Mais um problema para mim: por que vos trato por 'senhores', por que me dirijo a vós como verdadeiros leitores?". Para o narrador, dirigir-se a um interlocutor imaginário é uma forma de ultrapassar as barreiras que impedem o homem de falar honestamente consigo próprio: falar aos "senhores", num diálogo dramático que se quer violento e conturbado, é uma forma de dissociação, de cisão de um eu. "Sou um homem doente... Sou um homem mau. Um homem repulsivo, é isso que eu sou." O narrador apresenta-se para falar de si próprio. Num jogo teatral perfeito, o protagonista é, ao mesmo tempo, o humilhado e o censor, a vítima e a "consciência alargada" que testemunha em si, na sua degradação, o rebaixamento do homem. Atacando os valores humanistas, renegando a moral utilitária de Tchernychevsky e o seu palácio de cristal, o narrador resgata para o homem a liberdade de um "nocivo elemento fantástico", irredutível a qualquer fórmula positivista, ou às "vantagens humanas" que norteiam "l'homme de la nature et de la vérité": "Mas, repito pela centésima vez: há um caso, apenas um, em que o homem pode propositada e conscientemente desejar para si algo de prejudicial, de estúpido, até de extremamente estúpido, ou seja: para ter direito a desejar para si até o extremamente estúpido e não estar limitado pela obrigação de desejar para si apenas coisas inteligentes..." Rondamos aqui o raciocínio de Raskolnikov, estamos perto de uma necessidade titânica de transgredir para testar um absurdo, para reivindicar uma liberdade autotélica, e por isso mais forte, mas que significa inevitavelmente a condenação a uma culpa.O homem do subterrâneo reconstrói na sua violenta discussão uma realidade humana rebaixada e marcada pela desumanização, através de um uso de figuras que antecipa os sonhos mais medonhos da moderna literatura: "Agora, meus senhores, vou contar-vos, seja ou não do vosso agrado, porque não consegui tornar-me nem sequer um insecto. Solenemente vos digo: eu quis ser insecto, reiteradas vezes. Mas nem disso tive a honra." O homem-insecto, "um rato de consciência alargada", sempre humilhado, procura a vida na autodestruição permanente de uma consciência imaginativa que lhe atribui poder sobre as leis da natureza e sobre todos os muros de pedra que nunca o deixarão passar, ao mesmo tempo que lhe concede aquilo que mais deseja e que o define enquanto homem, o desejo em si, o incessante desejo que se condena a si próprio por se querer impossível: a lesão final da vida, mas em nome da vida. "E quem sabe (não há a certeza) se, talvez, todo o objectivo a que a humanidade aspira na terra consista exclusivamente nesta interrupção do processo de ir para um objectivo, por outras palavras, na própria vida e não no objectivo em si, que sem dúvida outra coisa não é do que o dois e dois serem quatro, ou seja, uma fórmula, mas dois mais dois são quatro não é vida, meus senhores, e sim o início da morte."Com a consciência alargada do homem do subterrâneo nasce o olhar lúcido sobre o absurdo, lúcido e febril, que apenas numa encenação de vozes pode traduzir o caos da consciência dilacerada pelo orgulho e pela culpa sem razão. Nasce a loucura torturada e inerte do "homem sem qualidades", do homem-insecto, ou rato, ou apenas desejo, "um veneno de impregnados desejos insatisfeitos". Esta voz do subterrâneo, a mais abjecta e degradada, mas consciente de uma loucura sem forma, sai com Dostoiévski do seu esconderijo para nunca mais deixar o teatro do mundo: "Aliás, ficai sabendo de uma coisa: estou convencido de que é preciso pôr-nos um freio, a nós, aos do subterrâneo. Embora sejamos capazes de ficar no subterrâneo, calados, durante quarenta anos, se sairmos para a luz do dia e estourarmos, falamos e falamos, não paramos de falar...".