Morreu o poeta Egito Gonçalves
Poeta, tradutor, fundador de revistas literárias e editor de uma das mais importantes colecções de poesia do pós-25 de Abril, Egito Gonçalves foi uma das mais intervenientes figuras da poesia portuguesa da segunda metade do século XX.
"Aproveito a tua neutralidade,/ o teu rosto oval, a tua beleza clara,/ para enviar notícias do bloqueio/ aos que no continente esperam ansiosos. (...)" ... Nos anos 50 e 60, o poema de Egito Gonçalves que se inicia com estes versos - ver a transcrição integral ao lado - tornou-se um verdadeiro símbolo da oposição ao regime salazarista. Escrito em 1952, publicado pela primeira vez na revista "Árvore" e rapidamente traduzido em várias línguas, este "Notícias do Bloqueio" é, antes de mais, um grande poema lírico, e foi sem dúvida por isso mesmo que se tornou um texto de resistência tão eficaz. A ponto de ter sido igualmente adoptado como poema de culto por movimentos clandestinos dos países de Leste, antes da queda do Muro de Berlim. Garante-o o poeta Casimiro de Brito, que, tal como Egito, manteve duradouras ligações ao PCP. É também este texto que chama a atenção da crítica para a obra de Egito, que se iniciara com "Poema para os Companheiros da Ilha" (1950), um livro que o autor nunca viria a reeditar, e "A Evasão Possível" (1952). Em 1958 publica "A Viagem com o Teu Rosto", que a censura irá probir. Alguns dos melhores poemas da primeira fase da sua obra estão contidos neste volume, desde o já referido "Notícias do Bloqueio" a esse "Afogado no Rio Leça", cujo tom quase surrealista se adequa na perfeição ao destinatário do texto: o poeta Mário Cesariny, que Egito salvou literalmente de morrer afogado. Ao longo de meio século - contado até à publicação, em 2000, do seu último título, "A Ferida Amável" -, Egito escreveu mais de vinte livros de poemas. Uma obra na qual é difícil rastrear uma evolução clara, já que, como bem notou Óscar Lopes, esta poesia revela uma oscilação pendular "entre a vertente lírica e a vertente interventora ou satírica". E podem assinalar-se, dentro da primeira, inúmeras cambiantes, desde a assumida poesia de amor dos seus dois últimos livros até à pura evocação de pessoas, lugares e pequenos episódios quotidianos que constitui o volume "E No Entanto Move-se" (1995), vencedor dos prémios do PEN Clube e da Associação Portuguesa de Escritores. Mas a dedicação de Egito à poesia esteve longe de se esgotar na escrita da sua própria obra. Criou e dirigiu uma série de revistas literárias - desde "Serpente" e "Notícias do Bloqueio" até "Limiar", ainda em publicação -, traduziu inúmeros poetas, sobretudo do Leste europeu e dos países nórdicos, organizou diversas antologias e, não menos relevante, fundou em 1975 a editora portuense Limiar, cuja colecção "Os Olhos e a Memória", exclusivamente reservada à poesia, publicou, entre, muitos outros, Ramos Rosa, Fernando Guimarães, Pedro Tamen, Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Gastão Cruz ou Carlos Poças Falcão. E nem só a poesia o interessou. Foi um dos fundadores do Teatro Experimental do Porto e chegou a presidir ao Cineclube portuense, para já não referir outras dimensões, como a de praticante de montanhismo. "Era o homem mais optimista que conheci", diz Casimiro de Brito. "Quando dizia que estava óptimo, estava só bem, era preciso dar um desconto, mas ele dizia-o com toda a sinceridade". Talvez por isso a sua morte tenha apanhado alguns amigos de surpresa, como sucedeu a Pedro Tamen: "Foi, para mim, um enorme choque. Era, além de um excelente poeta, um homem admirável. É uma grande perda para a poesia portuguesa e uma grande perda para mim, que perdi um dos meus melhores amigos". Com a sua juvenilidade e boa disposição proverbial, Egito era um homem que gostava de comunicar com os outros. A poetisa Rosa Alice Branco, que o acompanhou nos últimos anos, observou bem - no prefácio que escreveu para "E No Entanto Move-se" - que este desejo de uma genuína comunicação é uma das chaves cruciais da sua própria poesia. Os dois versos que abrem "Poema para os Companheiros da Ilha", o já referido livro de estreia repudiado, são estes: "Atiro a minha voz sobre o Atlântico Norte/ como uma flecha aos corações dos companheiros".