Giuseppe Verdi, uma herança universal

Sentiu por todos nós: o maior responsável pela renovação da ópera italiana morreu há cem anos

Chorou e amou por todos nós. Gabriele d'Annunzio pronunciou estas palavras no funeral de Giuseppe Verdi, celebrado, com toda a pompa, um mês depois da sua morte. O cortejo fúnebre foi acompanhado por membros da família real e do parlamento, por numerosas personalidades da Itália da época, por diplomatas, e, ainda, por compositores, entre os quais Puccini e Mascagni. O coro do Teatro La Scala, dirigido por Toscanini, cantou o célebre "Va, pensiero" e, às suas vozes, juntaram-se as de milhares de pessoas que encheram as ruas de Milão para dar o seu último adeus a uma das figuras mais importantes da história italiana.Uns dias antes, a 21 de Janeiro, Verdi tinha tido um ataque que deixara a Itália em suspenso. A tal ponto que, então, as ruas próximas do hotel milanês onde o compositor morou nos seus últimos anos, foram forradas para evitar que o barulho das carruagens o incomodasse. A notícia da morte da rainha Victória, anunciada nessa altura, passou desapercebida aos italianos, que, expectantes, aguardavam o fatal desenlace de Verdi, bastante mais pacato do que aqueles que ele tinha musicado nas suas óperas.Verdi tinha tentado, aliás, que o seu funeral não se tornasse numa espécie de grande cena operática. O episódio antes descrito foi uma cerimónia de Estado, organizada por motivo da trasladação dos seus restos mortais para a capela da Casa de Repouso dos artistas, que ele mesmo havia fundado em 1899. O primeiro funeral de Verdi tinha respeitado os seus últimos desejos - "nem música, nem canto" - ficando limitado à família e às pessoas mais próximas. Essa dualidade entre o homem público, aclamado pelos seus contemporâneos durante os anos do delicado processo da unificação nacional italiana, e o homem privado, ditatorial e irascível, rigorosamente fiel aos seus amigos, preocupado com os seus investimentos em propriedades rurais (as suas óperas preferidas eram "Rigoletto" e "Aida", porque eram as que mais dinheiro lhe tinham dado a ganhar), marcou a existência do compositor, cujos momentos mais intensos tiveram mais a ver com as questões pessoais do que com os entusiasmos da política.As suas óperas, essas reflectiram ardentemente os sentimentos mais extremos e díspares, emocionando os públicos dos principais teatros de ópera, na Europa, na América, e, até, no Egipto. Ele, que, na opinião do compositor Luciano Berio, assumiu em Itália o papel que Shakespeare teve na Inglaterra, viu no dramaturgo inglês a sua fonte de inspiração, numa perspectiva profundamente romântica. Ambos partilharam a mesma procura da variedade dramática, que um soube traduzir com palavras e o outro representar com música. Os seus nomes ficaram unidos em "Macbeth" (1847) e nas duas últimas óperas do compositor: "Otello" (1887) e "Falstaff" (1893).É precisamente a veia dramática o que distingue Verdi dos seus antecessores: Rossini, Bellini ou Donizetti. Essa expressão reduz, contudo, a verdadeira dimensão do talento do compositor, que foi capaz de dominar com mestria todo aquilo que só ganha sentido no palco: o excesso, a capacidade de transgressão, a intensidade das situações e a fatalidade dos sentimentos. No entanto, Verdi concretizou a renovação do teatro italiano de ópera de forma pacata. Apropriou-se da tradição do melodrama, transformando internamente as suas convenções.Afinal, esteve sempre convencido de que, em música, o regresso ao passado seria também um passo em frente. Como modelo dramatúrgico, o melodrama caracterizava-sepela sua estrutura, formada por números independentes e simétricos, que reflectia idealmente a acção. A orquestra apenas acompanhava as vozes, sendo estas distribuídas na trama e usadas melodicamente conforme regras pré-determinadas, dentro das quais se contavam as exigências feitas pelos próprios cantores. Nas suas primeiras óperas, o compositor respeitou, aproximadamente, esse modelo, como se mostra em "Nabucco" (1842), cujo enorme sucesso deu início a uma fulgurante carreira que o levaria a dominar os palcos italianos, e, em consequência, todos os teatros de ópera italiana disseminados pelo mundo.Foram três óperas escritas na primeira metade da década de 50, coincidindo com a sua maturidade criativa, as que beneficiaram de modo mais evidente com a sua revisão da herança deixada pelos seus antecessores: "Rigoletto" (1851), "La Traviata" e "Il Trovatore" (ambas de 1853). Por exemplo, na correspondência trocada com o libretista de "Il Trovatore", fica explícita a necessidade de Verdi em pensar nas óperas como se estas fossem constituídas por um único acto, de maneira a evitar os trechos isolados, que lhe davam a impressão de fazerem parte de um programa de concerto. A renovação manifestou-se também em domínios mais subtis. Os dramas pessoais do bufão Rigoletto, da cortesã Violetta e da cigana Azucena adquirem nessas três óperas uma importância tal que é completamente alterado o tradicional equilíbrio vocal entre os cantores, modificando-se de maneira essencial o melodrama clássico. A crueza da vida substitui o idealismo anterior na ordenação da acção, dando às personagens uma densidade dramática nunca antes atingida. O génio dramático de Verdi faz com que, mesmo em interpretações menos interessantes, as suas óperas agarrem a atenção do público, que é manipulado e absorvido pela intensidade das emoções mostradas em palco. A perfídia, o ciúme, o amor não correspondido, a entrega, o orgulho, a humilhação e o ódio são alguns dos ingredientes que Verdi combina como um mestre, e que são, nas suas óperas, tão importantes quanto a própria música.O perfil imposto pelo compositor aos seus protagonistas foi determinante para o nascimento de um novo tipo de cantor, a quem eram exigidos dramatismo e agilidade. As partes vocais escritas por Verdi confrontam-se com uma parte orquestral cada vez mais densa e contêm indicações que as aproximam da escrita instrumental, o que evidencia a sua preocupação em controlar com detalhe o resultado final do seu trabalho. São conhecidas as histórias de sopranos que perderam a sua voz cantando os difíceis papéis das óperas de Verdi, nomeadamente a Abigail de "Nabucco". E é habitual ouvir na boca dos melómanos a queixa pela actual escassez de verdadeiros cantores verdianos. Contudo, José Cura e Roberto Alagna, Angela Gheorghiu ou Bryn Terfel são representantes de uma maneira moderna de abordar Verdi, irrepreensível tanto vocal como dramaticamente, que asseguram a continuidade da história da interpretação verdiana no século XXI. Para gáudio dos seus fiéis.

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