Rebelde com Causa

Saint Cyr", adaptação de um romance de Yves Dangerfield, conta a história do "colégio" feminino de Saint Cyr (nada a ver com a academia militar napoleónica com o mesmo nome), instituição destinada a criar (ou a "construir", no sentido mais técnico do termo) cortesãs durante o reinado de Luís XIV. Ao leme de Saint Cyr estava Françoise de Maintenon, que primeiro fora a educadora dos filhos bastardos do rei, depois sua amante, e finalmente, mas em segredo, sua mulher. O colégio recebia raparigas vindas da França inteira, de famílias nobres mas arruinadas (quando não completamente destruídas) pela guerra, e dava-lhes a educação condizente com a sua classe social - ao mesmo tempo que preparava o "enriquecimento" futuro da corte de Luís XIV.

"Saint Cyr" não é só um filme de época, na medida em que não se limita a pretender reconstituir uns quantos factos e uns quantos ambientes - e por isso, mais do que um filme de época, é um filme histórico (este sim, um género verdadeiramente em desuso). Patricia Mazuy, realizadora de currículo ainda reduzido, cuja maior parte da obra foi até agora dirigida para a televisão (de "Travolta et Moi", um desses telefilmes, há referências bastante positivas) tem uma ideia-chave para que assim seja: vai filmar o colégio de Saint Cyr menos como um "facto" do que como um "conceito". O seu tema, portanto, é a educação, a educação como condicionamento, como modelação e construção de seres humanos segundo determinadas características pré-estabelecidas e idealizadas - em suma, a educação como manifestação de um poder político ordenador e uniformizador. De resto, não será por acaso que Mazuy dedica, ainda no início, tanto tempo de filme ao problema linguístico: as raparigas chegadas a Saint Cyr falam cada uma o seu dialecto regional diferente, e a primeira tarefa é pô-las a falarem o francês e a "esquecerem" (expressão utilizada no filme) o sinal mais saliente da sua origem - o que é evidentemente também uma maneira de sobrepôr uma identidade nacional francesa às múltiplas identidades regionais da França de finais do século XVII.

Mazuy falou do seu filme como um "Full Metal Jacket de saias", mas não seria completamente descabido se tivesse referido outro Kubrick sobre a educação, a "Laranja Mecânica". A verdade é que, a partir destes dados de base, Patricia Mazuy constrói em "Saint Cyr" uma espécie de parábola sobre o poder e sobre a rebeldia, e sobre o modo como o poder reage aos desvios consubstanciados por essa rebeldia (ou seja, sobre o modo como o poder tem tendência a totalitarizar-se para eliminar "asperezas"). Pressupostos que não correm o risco de se tornarem numa demonstração esquemática, porque a realizadora os integra, com alguma subtileza, num tecido dramatúrgico razoavelmente denso. E aí, é absolutamente capital a personagem de Madame de Maintenon, interpretada por uma Isabelle Huppert em plena forma. É uma personagem cujas motivações permanecem obscuras, assim como o permanecem a sua relação com o sexo (vide a cena com o rei na "caleche") e com o seu passado. Mas essa obscuridade toda permite pensar que Maintenon vive, na sua função de criar meninas exemplares, uma espécie de redenção, e que Saint Cyr é a salvação da sua vida através da salvação da vida dos outros. Se isto evita que a personagem caia, por sua vez, no esquematismo, transforma-a em algo bastante mais sinistro do que uma simples representação mais ou menos "malévola" do poder: é quase uma missionária, alguém que se sente investida de um sentido de destino a cumprir e que atribui uma dimensão religiosa à sua missão, alguém de convicções tão fortes e profundas que só pode sufocar as dúvidas à nascença.

A partir de certa altura (curiosamente, aquando da representação de uma peça de Racine, sinal de que a educação artística é sempre um perigo para o poder...), quando Madame de Maintenon se incomoda, por algum motivo (revê-se? não se revê? assusta-se com aquele "grão de areia" na engrenagem do seu programa?) com a intensidade emocional que duas raparigas investem na representação, o filme passa a ser dominado pela "fúria" correctora da personagem de Huppert: pede a Racine que escreva outra peça que funcione como antídoto da primeira, mas sobretudo instaura um regime de aniquilação emocional que, evidentemente, só estará completo quando passar a ser, também, de aniquilação corporal - daí em diante, o colégio de Saint Cyr é um espaço concentracionário, onde pelas melhores intenções e mais nobres ideais todas as raparigas se devem esquecer que têm um corpo e uma alma.

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