É uma preciosidade inesgotável. Talvez nunca se tenha visto representação tão sintética da "cegueira" do poder, num filme que diz tudo o que tem a dizer sobre a associação entre o Poder e o Mal de maneira espantosamente sussurrada, poderosa e sintética.
Michael Curtiz, nascido em 1888 e falecido em 1962, foi um dos mais prolíficos realizadores da época clássica americana, tendo realizado cerca de 100 filmes - a que se devem acrescentar ainda os cerca de 60 que, durante os anos 10 e 20, dirigiu na sua Hungria natal. Um dos títulos que assinou na América foi "Casablanca", porventura o mais mítico filme de toda a história do cinema. Apesar disso, raros são os cinéfilos que, instados a nomear os grandes realizadores clássicos, se lembram dele - e de "Casablanca" mais depressa se diz ser um "filme de Bogart e Bergman" ou um "filme da Warner" do que um "filme de Curtiz".
Nem "autor" nem realizador "genial" (coisas que muito poucas vezes lhe terão chamado), foi acima de tudo um homem de estúdio (um "artesão", dir-se-ia), perfeitamente adaptado às condições de trabalho no interior do sistema industrial americano - e por isso mesmo, como o provam quer a sua longa e ininterrupta carreira quer a escolha para dirigir "Casablanca", um favorito dos produtores, que o escolhiam tanto para obras de rotina como para lidar com os seus "pet projects".
Foi um homem daquela espantosamente sólida "linha média" do cinema clássico americano (que falta fazem alguns Michael Curtiz ao cinema americano contemporâneo!), que muitas vezes valia o que valiam os valores de produção, noutras valia mais e noutras valia menos. Indiscutivelmente talentoso, deixou uma obra desigual, onde há, em bom português, muito pastelão, mas onde também existem objectos cujo fascínio permanece intacto.
"O Lobo do Mar", de 1941, escolha "cirúrgica" dentro da vasta obra do realizador, é um desses títulos, marcando porventura um dos momentos em que Curtiz se transcendeu, a si e ao material colocado à sua disposição. Um dos aspectos mais cativantes do filme é, desde logo, tudo o que o liga ao seu tempo e à sua origem - ou seja, o modo como nele se integram e se exibem, com consequências a nível plástico e a nível dramático, algumas das principais forças do cinema clássico americano.
Por um lado, temos uma espantosa "engenharia" de argumento (de Robert Rossen, com base num romance de Jack London) que resulta não apenas numa admirável concisão e secura dramatúrgica mas também numa inultrapassável capacidade para definir personagens e situações com um simples plano, um simples olhar ou uma simples frase. Por outro lado, e tratando-se de um filme passado em alto mar mas inteiramente rodado em estúdio, temos aquela "negação" do espectáculo, inversamente proporcional à condensação de energia, que como sempre opera maravilhas: do mar não vemos nada (está sempre nevoeiro ou é de noite), e essa invisibilidade do cenário em redor não só concentra toda a acção no navio-pirata de Edward G. Robinson como o cerra, de maneira quase expressionista, num vazio isolado do resto do mundo - o "The Ghost" (assim se chama o navio) transforma-se numa espécie de microcosmos flutuante, habitado por toda a sorte de malfeitores e gente "com um passado".
À beira da misantropia
De acordo com estas características, "O Lobo do Mar" é menos um filme de aventuras do que um estudo psicológico, sobre o Mal, sobre a ambição, sobre a frustração, sobre as fraquezas humanas, e sobre a redenção. Tudo centrado no confronto entre as personagens do vilão Robinson (a "encarnação" do Mal) e de Alexander Knox, um escritor recolhido no "The Ghost" depois de um naufrágio, e que propõe ao primeiro escrever a sua biografia. A figura de Robinson é complexa, e é isso que atrai e repele a personagem de Knox. Aliás, dir-se-ia que a escolha de Knox (actor "neutro", um tanto ou quanto desenxabido) para herói positivo, foi uma maneira de fazer sobressair o fascínio do Mal representado por Robinson - depois reforçado, por exemplo na espantosa sequência em que Knox visita o seu camarote e descobre a sua biblioteca, sequência que acaba com Robinson a citar uma passagem de Milton para justificar o seu comportamento e a sua carreira de malfeitor.
Robinson é um tirano, que dirige o seu barco sem respeito pela tripulação, e que rouba, mata e humilha sem dó nem piedade, numa provável metáfora de outros tiranos que, nesses anos 40, estavam a pôr o mundo real a ferro e fogo. Mas, e é isso que faz de "O Lobo do Mar" um filme à beira da misantropia, aqueles que Robinson tiraniza não são melhores do que ele: a tripulação do navio é um sortido de cadastrados, violentos, bêbedos, delatores, cobardes e etc., fazendo dele o microcosmos de um mundo inapelavelmente corrompido. Curtiz ainda oferece uma hipótese de redenção às personagens de John Garfield e Ida Lupino (salvos, neste caso, pela atracção que nasce entre eles), mas é menos misericordioso para as outras personagens secundárias. Duas delas destacam-se, no capítulo "fraquezas humanas": uma, a do médico bêbedo interpretado pelo grande secundário Gene Lockhart, paga com a morte o preço de um último assomo de dignidade; outra, o "rato" delator interpretado pelo igualmente grande secundário Barry Fitzgerald, é a personificação da mesquinhez e da baixeza.
Filme extraordinariamente rico e denso, é uma preciosidade inesgotável. Entre o muito que fica por dizer, registe-se ainda, como exemplo de tudo o que "O Lobo do Mar" guarda, um fabuloso momento de cinema: Robinson ao leme, acometido de um ataque de cegueira, incapaz de ver que Knox, Garfield e Lupino fogem mesmo à sua frente do navio. Talvez nunca se tenha visto representação tão sintética da chamada "cegueira" do poder, num filme que diz tudo o que tem a dizer sobre a associação entre o Poder e o Mal de maneira espantosamente sussurrada, poderosa e sintética.