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A Festa

Se a família, enquanto lugar de partida e ponto de chegada da existência "social" do ser humano, é a pedra basilar do mundo ocidental, então "A Festa" é um filme perfeitamente apocalíptico. Num tom feito de ironia e (aparente) neutralidade, mas movido por uma requintada crueldade e por uma frieza emocional "nórdica", "A Festa" é o relato da rápida decomposição de uma ordem familiar, contada a partir do momento em que sobre ela é lançada uma pequena sombra maligna que não cessará de crescer até cobrir, inexoravelmente, tudo e todos. Como o desenvolvimento de um cancro que, embora escondido, já lá estava e já começara a corroer: a analogia clínica impõe-se, ou não fosse este filme de Thomas Vinterberg, como a crítica francesa gosta de dizer, um "film malade". "A Festa" conta-nos então a história de uma reunião familiar, organizada com o propósito de celebrar os 60 anos do seu patriarca ? Helge, um homem de negócios abastado e socialmente reputado. A família, dos filhos aos amigos e aos parentes mais afastados, reúne-se num hotel longe da cidade, e há desde o princípio sinais de uma perturbação subterrânea, incapaz de abalar a superfície mas que se sente prestes a explodir. E esses sinais convergem para uma chaga aberta no tecido familiar: o recente suicídio, envolto numa aura misteriosa, de uma das filhas de Helge. Inicia-se o banquete, começam os discursos de circunstância, e surge a primeira "racha" na harmonia familiar: um dos filhos ? o irmão gémeo da que se suicidou ? insinua, no tom de quem está a contar a mais pacata das recordações de infância, que o pai abusava sexualmente dele e da irmã. A partir daqui tudo avança em espiral, da incredulidade inicial dos restantes familiares (ou da recusa em aceitar algo de que se está perfeitamente consciente, como acontece no caso da extraordinária personagem da mãe) até ao avolumar das provas contra Helge, culminando na arrepiante sequência do pequeno-almoço do dia seguinte, momento em que se consuma a aniquilação da ordem familiar, quando o pai se desculpa perante os filhos e um deles lhe diz "muito bem pai, mas agora vá-se embora para podermos continuar a comer". Podemos lembrar-nos de Buñuel ? "O Anjo Exterminador" até ecoa com alguma insistência, através da festa, da clausura das personagens e das insólitas relações entre os criados e os patrões ? pelo progressivo esvaziamento de sentido do ritual até que dele fique apenas a "forma", assim tornada reveladora da arbitrariedade e da vertente puramente "mecânica" das suas convenções. Mas Vinterberg acrescenta, sibilinamente, mais alguns dados para acentuar o mal-estar geral, como as referências à maçonaria e contundente irrupção do tema do racismo ? com o seu cúmulo no momento em que toda (ou quase toda) a família entoa alegremente uma canção racista. Como se, aberta a "caixa de Pandora" e quebrado o verniz das aparências, todos os horrores fossem possíveis e cada momento correspondesse a mais um golpe no processo, sem hipóteses de retorno, de destruição da harmonia primordial. A ironia ácida de Vinterberg surge ampliada pela utilização do vídeo ? formato em que "A Festa" foi filmado, tendo posteriormente sido transposto para película de 35mm. É um pormenor que, sendo ou não mera consequência dos "mandamentos" impostos pelo "Dogma 95" ? de que o filme é a segunda manifestação, depois de "Os Idiotas" de von Trier ? adquire uma função verdadeiramente expressiva. Porque "A Festa", com a sua imagem granulosa e "amadora", com a sua câmara instável e os seus enquadramentos tremidos, é filmado como uma dessas anódinas e pacíficas reportagens familiares sobre casamentos e baptizados ? no mais "familiar" de todos os suportes audiovisuais, o vídeo. Agora imagine-se uma "cassette" mandada por exemplo para o "Isto só video" onde, entre bebés a gatinhar e miúdos a estamparem-se de bicicleta, aparecesse um filho a acusar o pai de pedofilia, ou uma família a cantar uma canção sobre "pretos"... É a esta superfície de "normalidade" que, em última análise, Thomas Vinterberg se atira, para lhe denunciar a falsidade e, a uma imagem dominante, contrapôr outra, construida como o seu exacto negativo. A ambivalência ? inclusivamente ideológica ? de "Os Idiotas" não se perde em "A Festa", parecendo constituir-se como uma característica determinante dos filmes concebidos sob a égide do "Dogma 95". Há, é evidente, um cativante lado "anarca" no filme de Vinterberg, tal como já havia no de von Trier. Mas esse olhar é feito de uma complexa mescla de cinismo e repulsa, que acabam por conduzir à expressão de um ambíguo desejo de "purificação" face à "sujidade" do mundo que os filmes vêm anunciar, quando não denunciar. Este era, afinal, um tema-chave n? "Os Idiotas", e o final de "A Festa" ? o pai a abandonar a mesa do pequeno-almoço, banido do reduto familiar que antes dominava ? acentua essa ideia: extirpada a "raíz do mal", o mundo pode então continuar (mais ou menos) como dantes. Vinterberg furta-se do princípio ao fim a exibir um "ponto de vista", o que é tão eficaz em termos dramáticos como ambíguo em termos ideológicos ? e ninguém negará que essa ambiguidade, de certa forma um fruto do coeficiente de provocação contido nos "dez mandamentos" do "Dogma 95", funciona como uma "abertura" do filme e contribui radicalmente para toda a impressão de perturbação que ele deixa no espectador. Liminarmente apolítico, ou profunda (e obscuramente) politizado? Esse é o mistério maior de "A Festa", e o mínimo que se pode dizer é que é um mistério que lhe fica muito bem.

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