"O Anjo da Guarda" é um filme que, à imagem do seu primeiro plano, se constrói todo à beira de um precipício. Passa por ele um desespero e uma sensação de fechamento em cuja esconjura consiste, justamente, o principal trabalho do filme - é por isso que o filme se chama "O Anjo da Guarda" e que essa figura, indistinta, enigmática e onírica, é recorrentemente convocada. É um filme de "fuga", mas que não pode deixar de se colocar uma questão inevitável: fugir para onde? Recusando a solução proposta pela personagem do velho advogado (que nesse primeiro plano atira o seu Saab pelos penhascos abaixo), "O Anjo da Guarda" propõe uma espécie de fuga interior, de certa forma uma fuga "à margem" do espaço, num itinerário que conduz a sua personagem principal (magnífica Natália Luiza) rumo à redescoberta das suas origens. Foge-se para "dentro" em "O Anjo da Guarda", numa trajectória de recomposição, ou melhor, de restabelecimento de uma identidade, por entre referências que se adivinham profundamente pessoais, logo muitas vezes enigmáticas, quase sempre fascinantes. Todas as personagens de "O Anjo da Guarda" estão cercadas, como se o dito anjo as tivesse abandonado durante a passagem de uma ponte precária (tal como a vemos nalguns planos) e elas se encontrassem subitamente suspensas sobre o abismo, a sós com a sua própria fragilidade, vulneráveis aos seus fantasmas - como lidar com essa repentina e absoluta solidão é a outra (ou é ainda a mesma) questão que o filme coloca. A esse cerco e a essa clausura Margarida Gil consegue conferir uma expressão cinematográfica sólida, palpável, muito para além da mera alusão metafórica: são as imagens, com que o filme abre (e a que, insistentemente, volta), de um mar revoltoso a bater contra os penhascos, mas são também, sobretudo, os inúmeros reenquadramentos de cada plano, como se nenhuma das personagens fosse capaz de escapar aos limites do quadro e a uma câmara que, se as deixa movimentarem-se, é para melhor as aprisionar e isolar do resto do mundo. O reenquadramento é aqui, decididamente, a figura estilística preferida (ou a figura estilística necessária) da cineasta, num reforço da ideia de que não é nem no espaço nem pelo espaço que a fuga é possível. Muito justa é também a definição da galeria de personagens secundárias, igualmente vistas, quase sempre, como prisioneiras de um décor: a de Maria do Céu Guerra e a dignidade patética da sua pose num tempo de antena televisivo; José Pinto, vítima da bebida e isolado no seu farol (belíssimo plano, o do seu monólogo); Pedro Hestnes, para quem o jardim e as rosas são o prolongamento visível da doença, a leucemia, que lhe corroi o sangue; Isabel de Castro e a sua casa rural, habitada por memórias transformadas em fantasmas; e Laura Soveral, cuja personagem se justifica como ilustração da inutilidade da acção: é a única capaz de se libertar, com as suas próprias mãos (matando o marido), da prisão que a encerra, mas tem como único resultado o encerramento numa prisão "real". Torna-se evidente que o filme de Margarida Gil é percorrido por outro anjo para além do "da guarda", e que este outro tem qualquer coisa de "exterminador". E no entanto, apesar de ser um filme onde todos os homens ou já morreram ou vão morrer, e onde para todas as mulheres a promessa de felicidade ou não chega ou é ilusória, é difícil dizer taxativamente que se trata de um filme "triste". Se Margarida Gil filma o desamparo das suas personagens, filma também a sua força, aquilo que as faz resistir a esse desamparo, assimilá-lo e viver com ele. Há qualquer coisa de catártico em "O Anjo da Guarda": não se trata de ultrapassar a infelicidade mas de a compreender, não se trata de apagar o passado para recomeçar do nada, mas de encarar essa memória e, simplesmente, continuar, a partir dela. Porque afinal de contas, como diz a personagem de Pedro Hestnes, "a morte é o lado da vida que não está virado para nós". E, se acreditarmos nele, o anjo pode aparecer para nos ajudar a passar a ponte.
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