Depois do relativo sucesso de projectos como "Fumo" e "Fumo Azul", as pretensões literárias de "Lulu on Bridge" colocam grandes perplexidades quanto ao futuro de Paul Auster com cineasta. Não chegamos a perceber se há literatura a mais para que o filme arranque ou se o texto literário esbarra imparavelmente num projecto visual mal delimitado. O nome de Paul Auster apareceu ligado a duas curiosas experiências cinematográficas, "Fumo" (com estatuto de argumentista) e "Fumo Azul" (como co-realizador), e a memória desses filmes familiares, recheados de participações especiais e de remissões para a sua obra ficcional, parecia apontar para um estatuto de excepcionalidade. O próprio escritor confessa ter resistido a prosseguir uma "carreira" fílmica até que apareceu a ideia de Lulu, "demasiado cinematográfica para um romance". Mesmo assim, o que inicialmente tomou a forma de um argumento não se destinava a ser dirigido por Auster, mas por Wim Wenders. Quando este declinou por se tratar de mais um filme sobre um filme, tudo se precipitou, obrigando o escritor a assumir a dupla função. Se analisarmos de perto o material narrativo, poderemos afirmar que se trata de um enredo triplo, de uma série de narrativas enquadradas, quase um conjunto de caixas chinesas, partindo da história de um músico de jazz, que, antes de morrer, constrói para si um sonho de vida, alternativa de sucesso, amor e morte, pautada por uma miraculosa pedra azul (simbolicamente achada na última de três caixas concêntricas), pelo encontro da alma gémea e pela entrada num labirinto kafkiano de culpa e castigo. É dentro deste segmento onírico que encaixa o projecto de adaptação da "Lulu" de Wedekind, para sempre conotada no imaginário fílmico com o mítico "A Boceta de Pandora" de Pabst e com o rosto mágico de Louise Brooks. E aqui começam os problemas: a narrativa principal resulta demasiado curta e elíptica para aguentar o peso de tão complexo "puzzle"; se a escolha do "austeriano" Harvey Keitel para o protagonista parece inatacável, Mira Sorvino nunca se torna credível, sobretudo como imagem para o feminino reincarnado em Lulu; o aleatório desencontro final entre os dois pólos amorosos da história enquadrada, ele na ambulância, ela na quase anonimidade de transeunte tocada pelo sinal de morte, faz perder força ao onirismo provocado, que acaba por instituir-se em fulcro do romance cinematográfico. Por outro lado, a constante oscilação entre escritas complementares desequilibra a dimensão fílmica, quando sublinha as coordenadas romanescas e vice-versa: não chegamos a perceber se há literatura a mais para que o filme arranque ou se o texto literário esbarra imparavelmente num projecto visual mal delimitado. Até o título pode sugerir perplexidades, de tal modo se encontra ligado ao filme dentro do filme, à obsessão daquela ponte em Dublin, à personalidade forte (muito mais marcante que a de Sorvino) de Vanessa Redgrave na realizadora, e não à narrativa enquadrante, reduzida à partida a mero objecto pretextual. A questão é que nunca se torna claro o que é pretexto de quê, como se o objectivo primordial fosse uma quase abstracta demanda de uma qualquer boceta de Pandora, independente dos males que encerre e das catástrofes que desencadeie. E aqui o projecto surge ainda mais como vítima das muitas alterações de "cast" (ainda bem, de qualquer modo, que Salman Rushdie deu lugar ao perturbante Willem Dafoe que consegue dar fibra a uma personagem inexistente, a do kafkiano Dr. Van Horn) e dos constantes desvios de âmbito. Enquanto análise do onirismo "pre-mortem" falta maior consistência (e protagonismo) à sequência do tiroteio no bar, que abre o filme. Enquanto variação sobre a trilogia de Wedekind, falha redondamente na escolha da Lulu e na compreensão das muitas implicações do mito. Enquanto estrutura cega sobre um labirinto de caixas narrativas esgota-se na pequenez de uma bocetazinha de Pandora confusa, da qual, se não vem grande mal ao mundo, também não permanecerá memória imperecível.
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