Hora de Ponta

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Numa Los Angeles de "cartoon" reúnem-se duas tradições e dois registos a que dois actores dão corpo: Jackie Chan, a dimensão quase jocosa das artes marciais do cinema de Hong Kong e Chris Tucker, improvisando sobre um estereótipo do cómico negro, algures entre Eddie Murphy e Arsenio Hall, com uma voz esganiçada a fazer lembrar Butterfly McQueen, a jovem Prissie de "E Tudo o Vento Levou". A mistura explosiva de dois rostos, a contenção oriental de um e o histrionismo pateta do outro, puxa uma ficção convencional para níveis insuspeitados de corrosiva caricatura. O rapto, na "hora de ponta", da filha do embaixador chinês, tendo por fundo o tráfico de obras de arte e outros mafiosos malefícios, transforma-se, por obra e graça de "gags" sucessivos, numa extraordinária coreografia de explosões e actos falhados, passando do duelo dos opostos à fórmula irónica do duplo improvável, em pirotécnica exposição de recursos complementares. E, se as proezas do pior detective da polícia de Los Angeles (Tucker) podem remeter para o limitado universo de "Academia de Polícia" e quejandos, a mais valia das piruetas de Chan, a que se juntam um laconismo e uma máscara dignos de Pamplinas, vem desequilibrar o conjunto e fazer de "Hora de Ponta" uma das releituras modernas mais interessantes do burlesco clássico. O primeiro indício da influência de Buster Keaton no ritmo das peripécias sente-se na espantosa perseguição nas ruas de Hollywood, com a tentativa gorada de afastar o chinês da acção: as tricas de automóveis, a cena do poste ou o "gag" do volante de automóvel arrancado não desmerecem dos originais e mesmo as pausas intervalares para contar a história das diligências policiais, não conseguem quebrar a tensão cómica. Só que tudo existe apenas em função das expectativas criadas à volta das loucuras do inesperado par. Como nos modelos clássicos tudo se encaminha para o clímax, a cena culminante final, e, a esse nível, o filme atinge uma extrema economia narrativa: desde a sequência de Hong Kong à prisão do traficante de explosivos, tudo contribui para a síntese definitiva, sem dispersões, nem elementos perdidos. Assim, a rivalidade com a mulher-polícia (divertidíssima contribuição de Elizabeth Peña), aprendiz das técnicas de detonação, ou a irrequietude da "criança bomba" tudo é instrumentalizado a seu tempo, num crescendo que dá conta das etapas sucessivas: a cena do restaurante mais não faz do que preparar a grande cena da cúpula, a misturar os "thrillers" de Hitchcock com a truculência de John Landis, numa Chinatown aventurosa, reminiscente de Carpenter ("Jack Burton nas Garras do Mandarim") e de Bogdanovich ("Que se Passa Doutor?"), já de si "pastiches" de Charlie Chan ou de outras inúmeras "aventuras orientais" de Hollywood. Na cena da abertura da exposição reúnem-se, pois, todos os fios da acção: o rigor da encenação encontra o ritmo preciso para a evolução dos corpos, entre os objectos de arte a conservar a todo o custo, entre balas perdidas e quedas espectaculares. E o excessivo "meia-bola-e-força" descobre o veículo "quase perfeito" para se resgatar da inanidade: "Hora de Ponta" tem todos os condimentos para quem se delicie com "pancadaria-de-criar-bicho". Mas dissolve-a nos prazeres da comédia, nas estilizações coreográficas de um musical sem músico.

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