Romance Perigoso

O nome de Steven Soderbergh ficou ligado, de forma quase indissolúvel, a um dos grandes sucessos do final da década de oitenta, "Sexo, Mentiras e Vídeo", um requintado exercício de estilo, experimentando sobre os poderes da falsa improvisação e tocando zonas sensíveis da impotência emocional de uma geração. Enquanto impunha o quarteto de vedetas (Andie McDowell, James Spader, Peter Gallagher e Laura San Giacomo), o filme interrogava, em simultâneo, as capacidades representativas do cinema e a ficção enquanto jogo. Talvez porque tomava demasiado a sério a sua relação especular com o complexo universo kafkiano, a curiosa proposta biografico-narrativa, "Kafka", tentativa de reunir os estilhaços de uma obra num conjunto coerente centrado na figura do romancista, falhou redondamente e foi alvo dos mais escarninhos ataques. Em comum com "Sexo, Mentiras e Vídeo", "Kafka" mantinha o mesmo gosto pela manipulação das imagens, articulando-a com um cuidadoso trabalho de argumento tendente a multiplicar pontos de vista e a acentuar uma pluralidade de fios narrativos ainda que ténues. Esta subtil estrutura caleidoscópica mantém-se no filme que agora estreia com o patético título português de "Romance Perigoso", que sublinha precisamente o que a tessitura narrativa pretende evitar: a redução primária a uma vulgar história de amor entre um escroque e uma agente da autoridade. Pelo contrário, o original "Out of Sight" insiste na posição irónica face à invisibilidade do par, enquanto expressão de um verosimilhança imediata. Longe da vista dos espectadores se encontram os amantes na escuridão da mala de um carro, como longe do olho da câmara fazem o percurso final a caminho da punição (ou da redenção), aproveitando o longo caminho de regresso à prisão para um derradeiro (ou renovado) ajuste de contas. Se muito se tem falado na influência de Quentin Tarantino, e em especial da projecção das complexidades narrativas de "Jackie Brown" (mas também de "Pulp Fiction", sem a violência exposta que caracteriza o estilo tarantóide) nas personagens matizadas e nas inesperadas reviravoltas de "Out of Sight", parece mais produtivo ler Soderbergh como a vontade de criação de um discurso paródico, que, ao fazer "à la Tarantino", consegue ao mesmo tempo a sua própria independência expressiva. Por outro lado, seria grave ignorar o modo como Soderbergh pretende atingir os seus objectivos de supremo "pastiche" ao traçar tangentes aos clássicos do passado, nomeadamente aos filmes da parelha Alan Ladd/Veronica Lake, não por uma qualquer semelhança física, tantas vezes tentada, até porque de fácil identificação ("L. A. Confidential" é apenas um dos últimos exemplos), mas antes por uma busca estrutural de um relacionamento distanciado entre as componentes do casal. O simples acto de brincar com o fogo, desafiando as regras de sobrevivência e forçando o afrontamento nivelador entre bons e maus, repega na inocência culpada da "persona" de Ladd, em muitos dos seus veículos mais famosos. No entanto, a carnalidade da personagem de George Clooney não deixa ilusões quanto à ferocidade do jogo: não por acaso, os vários encontros entre os dois amantes, colocados em lados opostos da barricada da lei, vão deixando marcas físicas, evidências de uma rebuscada relação sado-masoquista, que culmina na cena final, extraordinária dança de espectros, a brincarem aos polícias e ladrões, com o tiro que reduz o homem a presa da mulher-polícia, inversão da situação do primeiro encontro. Aliás, desde a sequência em que a personagem de Jennifer Lopez (na sua interpretação máxima) deixa escapar Clooney, não denunciando a sua presença no elevador, que tudo se jogava numa estratégia de gato e rato, em que malfeitorias, diamantes e "gangs" não passavam de pretexto para um glamoroso exercício de estilo sobre as ruínas do "filme negro", com todos os dados patentes aos leitores. Basta não querer fazer como o tradutor português e privilegiar o divertimento (no sentido mais profundo do termo) em vez da seriedade (e do perigo) das rocambolescas peripécias.
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