Um deserto belo e cruel

Com os seus 600 mil quilómetros quadrados, Rub al-Khali ou Empty Quarter é o maior deserto de areia do mundo. Podemos visitá-lo a partir de Salalah, no Sul de Omã, na Península Arábica. De jipe é mais confortável, mas o explorador britânico Wilfred Thesiger deixou escrito que a única maneira de contemplar a beleza das dunas será a pé ou de camelo.

Quando Deus separou o mar e a terra, diz a lenda, quis deixar um lugar inabitável, proibido, desconhecido. Os árabes deram-lhe o nome de Rub al-Khali e o resto do mundo, por influência britânica, chama-lhe Empty Quarter. É o maior deserto de areia, com quase 600 mil quilómetros quadrados. Talvez os beduínos tivessem vagueado pela imensidão deste território, em busca de alimentos e pastagens para os seus animais. Mas se uma tribo alguma vez atravessou o Empty Quarter, dos montes de Nejd, a norte, até aos planaltos de Hadhramaut, a sul, não deixou jamais qualquer mapa.Durante séculos, o Empty Quarter foi uma barreira inexpugnável aos que sonhavam viajar pelo centro da Península Arábica. Além dos perigos que constituíam tribos guerreiras, bandidos impiedosos e xeques desconfiados, havia ainda que sobreviver a dunas de 200 metros de altura, encostas vertiginosas, montanhas rochosas, pântanos e salinas. E no entanto, apesar da sua inacessibilidade, existiu no Empty Quarter uma extraordinária cidade - Ubar -, que "desapareceu" por volta do ano 300. Segundo Rashid al-Din, um historiador do século XIII, Ubar foi criada para imitar o Paraíso. Prosperou graças ao comércio do incenso e era o orgulho de um rei, Shaddad. Grande era o esplendor de Ubar, com os seus sumptuosos palácios e magníficos jardins. Tão grande que, indignado com a arrogância do soberano e a ruindade dos súbditos, "Deus mandou punir a cidade de Shaddad com uma tempestade de areia e pedras". Da noite para o dia, prossegue a lenda, Ubar "foi engolida pelas dunas". E, a partir desse momento, foi habitada apenas por "criaturas malévolas, com um só olho, uma só perna e um só braço".As lendas do Empty Quarter tornaram-se irresistíveis para exploradores e aventureiros como Bertram Thomas, John Philby e Wilfred Thesiger. Depois deles, é a própria NASA, com os seus satélites, que procura descobrir o mistério de Ubar. Arqueólogos italianos estão, por seu turno, a investigar as ruínas do que se supõe ter sido o palácio da Rainha de Sabá. O nosso objectivo era mais modesto, quando combinámos com Mohamed e Najib, os nossos guias omanitas, partir em direcção a Rub al-Khalil: queríamos ver as dunas e os oásis, se possível ao pôr do Sol, e encontrar tendas de beduínos com os seus camelos.Sir Thesiger nunca aprovaria o meio utilizado para a nossa viagem. Não fomos a pé nem de camelo, como ele fez na sua primeira e segunda travessia, de 1945 a 1950. Fomos de jipe, o que, para aquele nobre nómada do deserto, constitui quase uma heresia. Escreveu ele no prefácio de "Arabian Sands", um dos seus livros: "Quando regressei a Omã e a Abu Dhabi em 1977 [...] fiquei desiludido e ressentido com as mudanças que a descoberta e produção do petróleo levaram à região. [...] A vida tradicional bedu [...] tinha sido irrevogavelmente destruída com a introdução dos transportes motorizados, de helicópteros e aviões."Foi, portanto, num todo-o-terreno que o guia Mohamed, nascido numa tribo "bedu" (em Omã, não se usa o termo "beduíno"), apareceu no Hotel Hilton, de Salalah, a capital da província de Dhofar (no Sul), para nos levar ao Empty Quarter. Thesiger, apaixonado pelos seus ajudantes-de-campo que "pareciam meninas", bin Kabina e bin Ghabaisha, também teria ficado desapontado com Mohamed. Este jovem, cujo rosto também "se iluminava quando sorria", deixou a família no deserto para ganhar dinheiro na cidade e poder casar.Não ficaria, contudo, tão desiludido se observasse a perícia com que Mohamed nos conduziu à "cidade perdida" de Ubar e às dunas, sem camelos nem beduínos, do Rub al-Khalil. Silencioso ao volante - o seu inglês resumia-se a meia dúzia de palavras -, ele provou ter um excelente treino de observação. Apesar de haver já muitas marcas de pneus que serviam de sinalização, Mohamed conhecia, minuciosamente, o terreno.A multiplicidade de pequenos tufos verdes e cinzentos faz com que todos pareçam iguais, mas Mohamed sabia distingui-los. E isso é importante para andar no caminho certo. Um anterior guia explicara que um "simra", por exemplo, com as suas pequenas bagas vermelhas, comestíveis mas amargas, não é igual a um "thermat", com bagas amarelas, que podem ser comidas pelos camelos mas não por pessoas.Mohamed não se perdeu. Entusiasmou-se até com as raríssimas gotas de chuva que caíram numa parte do percurso, apesar de terem deixado a estrada mais escorregadia. Ele era cauteloso e foi por isso que nos privou de ver o pôr do Sol. A província de Dhofar, onde o sultão Qaboos bin Said teve de vencer uma rebelião nos anos 70, ainda é uma zona de perigo. Pressente-se isso nos "checkpoints" e bases militares que nos acompanham até ao Empty Quarter.O que não mudou nos "bedu" e nos outros omanitas é o seu rigor no cumprimento dos preceitos islâmicos. Najib, com a sua "dishdaha" cor de salmão (só em serviço é obrigatório usar a túnica branca), fez Mohamed parar pelo menos três vezes numa tarde, para ambos se lavarem e rezarem virados para Meca. Apoiado numa bengala, que lhe dava um porte de aristocrata, Naijb - "o meu pai deu-me este nome em homenagem ao escritor egípcio Naguib Mahfouz" -, fez questão de explicar o ritual das orações aos "infiéis" que o acompanhavam.Nem um nem outro se importaram de ser fotografados, na areia a olhar o céu, terminando cada prece com o louvor "Allahu Akbar" (Deus é grande!). Por vezes, parecia um murmúrio, outras um cântico. Na vastidão do deserto, eles estavam certos de que Alá ouvia as suas vozes e o nosso silêncio. "A grande paz do islão desceu suavemente sobre mim", escreveu o explorador Philby depois de "possuído" pelo espírito do deserto e do seu povo. Thesiger relatou "a tranquilidade" que sentiu debaixo de um sol ardente.Nós sentámo-nos nas dunas do Empty Quarter. Admirámos a sua infindável geometria. As cores amarelo-ocre que as faziam reluzir. A textura suave onde pés se enterravam. Mas aqui não vimos camelos (apenas na aldeia de Al-Sawadi, nos arredores de Mascate, no dia em que foi inaugurada uma pista de corrida). E os beduínos que encontrámos não viviam em tendas, mas em casas de cimento construídas pelo governo. "Algumas pessoas insistirão em que viverão melhor depois de trocar a dureza e a pobreza do deserto pela segurança de um mundo materialista - eu não acredito nisso!", frisou Thesiger em "Arabian Sands".Os "bedu" não são sentimentais. A vida no deserto é, realmente, demasiado dura para eles serem românticos como alguns ocidentais os imaginam. Há ainda muita miséria e doenças, e eles sobrevivem graças a extraordinárias qualidades de honra, confiança, amizade, irmandade, lealdade e hospitalidade. Orgulhosos do que são, não têm medo da "civilização" a que se refere o paternalista Thesiger. Apenas desejam uma "boa vida" com quatro "m" - medressa (escola); mustashfa (clínica), mesjid (mesquita) e mayy (água).

Sugerir correcção