Os passos discretos de Bowles
Paul Bowles, o escritor americano autor de "O Céu que nos Protege", viveu em Tânger mais de 60 anos. Chegou, fascinado pelo desconhecido e pela liberdade de costumes, e foi ficando, num pacto tácito de incompreensão, fascínio e respeito. Um ano depois da sua morte, uma visita aos locais que foram o seu mundo e onde não deixou qualquer marca.
O café Hafa é um dos locais mais serenos que existem. É uma espécie de casebre de paredes sujas com quintal à beira mar. Aqui sentado, a uma destas velhíssimas mesas de madeira, a sensação é a de se ter passado a uma fase superior da existência. Talvez por estarmos num dos pontos mais elevados de Tânger? Sensação de pairar sobre um mundo em que podemos viver mas que não vive em nós. A que só voltaremos quando - e se - quisermos. Um mundo estático, pacificado, distante. Pairar. Talvez por ter, no interior, mesas coladas às janelas e outras escondidas em pontos escuros. Uma sala "de fumo", sem mesas nem cadeiras, apenas um tapete a cobrir o chão por inteiro, onde se pode tomar chá deitado, conversar, dormir, meditar, ou simplesmente existir. Talvez por ter árvores ao lado das mesas, escadas e socalcos no "quintal". Por ninguém olhar para a mesa do lado. Por haver em mesas contíguas grupos de homens a conversar, criaturas solitárias em silêncio, mulheres de trajes tradicionais a estudar - é o único café de Tânger onde se vêem mulheres. Por ser tão ao longe que ecoa o "muezzin" da mesquita a chamar para a oração. Por fazer sempre sol. Por se fumar tanto "kif". Por o mar ser tão circundante, silencioso e verde, por o café estar tão cheio de história e não haver vestígios de nada, não haver documentos, ruínas nenhumas, nem testemunhas. Esta sensação de termos dominado o tempo, eliminado a contingência, de que é certo haver outras dimensões, a imortalidade, a reencarnação, o corpo astral, a energia universal...O que há de especial com o café Hafa? O dono talvez nos pudesse ter explicado, mas morreu há dois meses. Com mais de 100 anos, por pouco não atingia a imortalidade, mas deve ter-se momentaneamente distraído com algum problema mesquinho do foro empresarial e acabou por morrer. O actual "gerente" explica apenas que os estrangeiros de Tânger apreciam muito o estabelecimento. Isso é que é importante. Certos sábados à noite, ou mesmo fins-de-semana inteiros, alugam o Hafa para festas particulares. As portas fecham-se e é só para convidados, explica o "gerente", segurando os copos de chá de menta. Marroquinos não entram, durante essas festas. São assaltos prepotentes ao encanto, à aura inexplicável do local, a mesma que até os cépticos pressentem em Stonehenge ou Fátima. Percebe-se que é uma apropriação abusiva, ainda que consentida, mais ainda por ser consentida. É uma violação.Mas há algo de transcendente na aura do café Hafa e ele sobrevive a tudo. É por ser assim humilde e sobranceiro, tão fulcral e tão esquecido, que se tornou um local de culto. E o poiso predilecto de Paul Bowles, o escritor americano que num dia de náusea do início dos nos 30 saiu de Nova Iorque em viagem pelo mundo, até desembarcar em Tânger, de onde só a morte o afastaria, mais de 60 anos depois. O que há de especial com o café Hafa? Pairar.Paul Bowles nasceu em Nova Iorque nos últimos dias de 1910. O pai era um dentista odioso que chegou a encostar deliberadamente o berço do bebé Paul a uma janela aberta para a tempestade, de onde só foi salvo da morte certa pela avó. A mãe lia-lhe contos de Edgar Allan Poe para adormecer. Aos 26 anos, Bowles decidiu estudar na Universidade de Virgínia, a mesma de Poe. Mas pouco depois partiu para Paris, sem se despedir da família. Em França publicou poemas em revistas surrealistas mas acabou por regressar a Nova Iorque para estudar música. Partiu de novo, acompanhado pelo professor de música, para França, Alemanha... Foi Gertrude Stein quem o aconselhou a visitar Tânger. Depois das primeiras viagens a Marrocos, ainda compôs música para peças de teatro da Broadway nova-iorquina, chegou a ter uma zarzuela estreada no Museu de Arte Moderna (MOMA) coreografada por Merce Cunningham e conduzida por Leonard Bernstein.Era já um compositor famoso nos Estados Unidos, e tinha casado com a lésbica judia Jane Auer quando decidiu partir de novo para Marrocos. "Ele escrevia música e era misterioso e sinistro", era assim que Jane recordava o seu primeiro encontro, numa festa no Harlem, em 1937. "A primeira vez que o vi disse: 'Este homem é o meu inimigo'".Casaram, diz-se que para se livrarem, ele, das mulheres, e ela dos homens, e viajaram pela América Central e outras regiões do mundo. Foi em 1947 que Bowles decidiu regressar a Tânger.Desde o final da guerra, a cidade estava transformada numa "zona internacional", com governação partilhada por sete países. Tornara-se conhecida pela sua permissividade moral. O sítio perfeito para o pouco convencional casal Bowles, com Jane a namorar rapariguinhas pobres berberes e Paul a relacionar-se intimamente com jovens artistas marroquinos.Paul Bowles gravava música tradicional e traduzia contos berberes e árabes. Só se entusiasmou por escrever ficção quando Jane, até aí uma escritora frustrada, escreveu e publicou com grande êxito o seu primeiro romance, "Two Serious Ladies". Paul publicou pouco depois "O Céu que nos Protege -The Sheltering Sky", que viria a ser magistralmente adaptado ao cinema por Bernardo Bertolucci. Famosos, nem por isso deixaram mais Tânger, a não ser para viagens aventureiras de que regressavam sempre aos apartamentos separados que alugaram num prédio incaracterístico e horrível no bairro do consulado americano.Mas enquanto para Paul Tânger era fonte inesgotável de inspiração literária, Jane perdeu-se na sensualidade e libertinagem da cidade. Frequentava festas de sociedade, onde frequentemente exibia as mais recentes conquistas de deslumbrantes prostitutas adolescentes, entregou-se sem contenção ao álcool e aos medicamentos. Nunca mais escreveu nada. Em 1956 teve o primeiro ataque cardíaco e acabou por ser internada num sanatório em Málaga onde morreria, em 1973. Paul isolou-se cada vez mais no seu apartamento do 4º andar do prédio Itesa, onde era visitado, numa peregrinação ininterrupta que durou até aos seus últimos dias, por admiradores de todo o mundo. Não deixou de escrever e traduzir. Em páginas de lucidez apaixonante, descreveu, com autenticidade inquestionável, uma Marrocos que ele próprio inventou.Estamos, com o nosso guia, Munar, em frente ao prédio de Paul Bowles. Um edifício branco muito decrépito, tipo dormitório. "Sim, o sr. Bowles vivia aqui", confirmam, sem grande reverência, uns miúdos a jogar futebol. "Era velhinho, vinha às vezes cá abaixo, de cadeira de rodas..." Subimos ao 4º andar. É impossível não estar hiper-atento aos cheiros, aos ruídos, na tentativa irracional de detectar uma presença - sintomas de peregrino. A porta de Paul Bowles está fechada. Mas a janela que dá para o vão da escada está partida, pode-se espreitar. Está tudo sujo, quase não há mobiliário, à excepção de uma mesa com uma garrafa em cima. É notório que alguém já habitou a casa depois da morte do escritor, apesar de Munar nos garantir que não. Alguém profanou o seu templo de banalidade, a sua zona neutra, como ele a definia.É difícil imaginar o autor de "Sheltering Sky" neste lugar tão vulgar, escrevendo, recebendo os seus visitantes ilustres. Porque Bowles veio para Tânger como um peregrino, fascinado pelo mistério de uma terra e de uma gente que não podia compreender, mas transformou-se ele próprio em destino de peregrinação. Desde o princípio até ao fim da sua longa estada foi visitado por várias gerações de escritores e artistas de todo o mundo ocidental. William S. Burroughs veio para Tânger em 1953, influenciado por um livro de Bowles. Veio para se drogar e procurar rapazinhos mas foi cá que escreveu a sua obra emblemática, "Naked Lunch". Com ele veio toda a geração beat. Allen Ginsberg, Jack Kerouac. Com estes a geração do rock'n roll. Os Rolling Stones, Sting, King Crimson. Todos vieram em adoração de Paul Bowles, que não entenderam e que os não entendeu. O que não é de admirar, já que falamos dos teóricos da alucinação, dos paraísos artificiais. Foi tudo um mal-entendido, admitiria Bowles, cujo fascínio por Tânger se fundamentou também num mal-entendido. Um "mal-entendido fecundo", na explicação de um ensaísta marroquino.A partir do seu apartamento do bairro do consulado, percorremos os caminhos habituais de Bowles. O café da Pension Fuentes, que a introdução de uma televisão transformou numa espécie de "sportsbar" mergulhado numa atmosfera de fumo, suor, perfumes árabes e luz bruxuleante, com dezenas de homens acotovelando-se nas cadeiras todas voltadas para o mesmo ecrã minúsculo, jogando dominó ou fumando cachimbo, de jilaba e capuz. O Le Dean's bar, o café da porta do Pequeno Souk, onde Munar garante que parava Mick Jagger.São estes aliás os pontos altos no repertório do guia. Os locais, os bairros, as casas dos estrangeiros de Tânger. O palácio magnífico de Forbes, as casas que americanos, ingleses e franceses compraram no Casbah. Como se fosse impossível não sentirmos o fascínio que ele próprio sente pelo fascínio que aqueles estrangeiros sentiram por Tânger. O mal-entendido fecundo.Desde o tempo em que era Zona Internacional, a "Zona", como lhe chamava Burroughs, que os estrangeiros se aperceberam da infinita tolerância de Tânger. Deixa que vivamos nela imaginando a terra que queremos. Deixa que inventemos o local com as medidas exactas de estranheza e perigo para que seja habitável. Para que possamos encontramo-nos a nós próprios, no local que escolhemos. Só não se aperceberam de que essa foi a melhor forma que os marroquinos encontram para se proteger. Como aconteceu noutras zonas exóticas que os jovens rebeldes ocidentais viram como paraísos. Goa, por exemplo. São locais que optaram por uma forma sui generis de sobrevivência: não o mimetismo mas a translucidez. Expediente tão perfeito que por vezes se preservaram esquecendo-se de si próprios. Como as mulheres marroquinas que entregam aos maridos a virgindade e a própria vida. Que se entregam sem protestos nem reservas como única forma de defesa numa violação tão absoluta. Esposas que os homens possuem durante toda uma vida sem nunca lhes chegar a tocar verdadeiramente. Que nunca chegam a mostrar quem são. Que nunca chegam a saber quem são.Tudo isto foi descrito por Bowles, e reconhecido na América e em Marrocos, em livros que circularam pelo mundo como o sangue do lençol que as mulheres marroquinas passam de rosto em rosto na dança delirante da cerimónia interminável dos casamentos. O sangue virginal e autêntico que testemunha a virtude da noiva, a sua entrega. O sangue da aliança.