Krazy Kat
José Maria Seleiro, vencedor do concurso Big Brother, da TVI, abandona a casa onde viveu durante 120 dias, em Venda do Pinheiro.
Há obras que não sobrevivem ao seu criador. Mas, em contrapartida, o seu tempo de vida prolonga-se muito para além da finitude biológica de quem lhes insuflou esse sopro vital. É o caso de Krazy Kat, do americano George Herriman.Por uma dessas ironias que nem sequer vale a pena perder muito tempo a debater, esta série norte-americana só registou um elevado índice de adesão (e de vendas...) nos seus primeiros tempos, quando Herriman ainda tacteava em busca de um estilo e de um registo definitivos. E também nunca mereceu a adesão incondicional dos leitores, tal era a originalidade e inovação que exalavam de cada tira e, sobretudo, de cada prancha. Por que resistiu, então, até à morte do seu autor e, mais do que isso, foi sempre apresentada como uma espécie de "jóia da coroa" do seu distribuidor, o King Features Syndicate (KFS)?A resposta é dupla. Tal como muitos estúdios de Hollywood, o KFS centrava o seu negócio na distribuição de produtos de massas, mas fazia questão de exibir um "perfume intelectual e artístico" com séries... fora de série. Além disso, o magnata da imprensa Hearst, "patrão" da empresa, era um incondicional admirador de Krazy Kat. Tudo somado, a série resistiu, e bem, até 25 de Junho de 1944, data da publicação da última prancha dominical, dois meses após o falecimento de Herriman.Não se ficam por aqui as singularidades desta genial criação, muitos anos-luz à frente do seu tempo, e que só décadas mais tarde viria a ter o reconhecimento que lhe é devido. A própria génese da obra, muito laboriosa, perde-se um pouco no labirinto do tempo e mergulha nesses anos exaltantes do princípio do século passado, quando os "comics" descobrem o seu imenso poder comunicacional.Em 20 de Junho de 1910, Herriman começou a publicar no "New York Journal" uma tira quase diária, Dingbat Family, rebaptizada de The Family Upstairs no dia 1 de Agosto seguinte em homenagem aos seus misteriosos vizinhos do andar de cima. A família tem um gato (ou gata?...), mas de seguida surgirá um cão (Ofissa Pupp) e, depois, um rato (Ignatz). Os Dingbats passam a existir obsessivamente em função dos seus estranhos vizinhos, que recebem visitas cada vez mais estranhas e insólitas. A 17 de Agosto, o rato pronuncia as primeiras palavras - "krazy kat" - e este evento é considerado como o acto fundador da série com o mesmo nome. No final de Agosto, o gato-gata e o rato já possuem uma mini-tira independente, que surge por baixo de The Family Upstairs, gerando um efeito, também ele, paradoxal: o título da série e o interesse dos próprios protagonistas parecem focalizados no que se passa no andar de cima, mas é em baixo que se joga o essencial da banda desenhada... A partir desse momento o gato-gata manifesta a sua paixão pelo rato e, em troca, recebe com tijolos na pinha, uma espécie de "mísseis afectuosos" lançados com uma nada amável energia. Só a 28 de Outubro de 1913 é que nasce, por fim, a série individualizada Krazy Kat, com uma tira diária vertical (o clássico alinhamento horizontal chegará mais tarde). Quanto às pranchas dominicais ("sundays"), vêem a luz do dia em 23 de Abril de 1916, dando início ao que muitos críticos consideram ser a grande época desta criação.Tudo decorre em torno desta triangulação única. Ofissa Pupp é o simbólico guardião da ordem pública e da moral dominante. Ignatz é um "burguês" instalado com assomos de rebeldia. Krazy Kat é uma criatura ambígua - "cat" designa tanto gato como gata -, característica maliciosamente acentuada pela arbitrariedade com que o artista se lhe refere como um "he" (ele) ou "she" (ela). E foi o próprio Herriman quem um dia caracterizou bem a situação, ao confidenciar ao cineasta Frank Capra: "Krazy é como um espírito. Os espíritos não têm sexo. Assim acontece também com Krazy".Outros personagens vão compondo esta admirável galeria, contribuindo para confirmar a série como uma "animal strip" onde os problemas humanos são equacionados por personagens animais interpostos. Mas é sobretudo nas "sundays" - ganham cor em Junho de 1935 - que a explosão criativa de Herriman é total, sobretudo quando impregna a série de um toque surrealista inconfundível. A localização geográfica em Coconino County, uma região que existe realmente no Arizona, permite-lhe explorar um despojamento que é, aqui, sinónimo de solidão opressiva. A par disso, Herriman procede a uma meticulosa e apaixonada desconstrução do idioma - criando dores de cabeça incomensuráveis aos tradutores, como se pode constatar nos dois álbuns da edição portuguesa (Livros Horizonte, 1991) -, acentuando a aliança com o "nonsense" puro.No seu todo, esta é uma obra onde se configura uma visão muito crítica do mundo "real", um pouco como se, na visão de Herriman, uma sociedade absurda reclamasse um retrato profundamente irónico e bem humorado.