Emílio Rui Vilar
Foi em sua casa, projectada por um jovem arquitecto português e cercada pelas serranias de Sintra, que conversámos. Cheguei já com o sol a fugir do dia. Dei-me conta do espaço da entrada exterior, amplo e muito generoso, ainda consegui espreitar para o horizonte verde que o jardim sugere e fui, de imediato, conquistada por uma espécie de serenidade, acolhedora e meticulosa, que os interiores vão desdobrando para quem chega. É uma casa parecida com os seus donos. Paira no ar um murmúrio, a duas vozes, nítidas, afinadas, distintas. Discreta, a casa também nos fala do contentamento de quem a habita. É uma casa refúgio de outras horas, outros lugares e, seguramente, um belo estímulo para as aventuras do pensamento e da vida. No caminho pus-me eu a pensar no que sei e não sei de Rui Vilar. Sempre gostei do modo como olha quem tem pela frente. Há uma ironia no azul do olhar que, para quem estiver atento, contrasta com a moldura, contida, de toda a sua aparência e chega a conseguir desabotoar-lhe o acerto dos fatos que veste. Substantivo no modo como fala, é tão rigoroso nas palavras que escolhe como nas memórias que convoca. Discreto, como a casa onde me recebeu, tem por vezes dificuldade em disfarçar uma espécie de curiosidade, quase juvenil, sobre os outros. Quando esses outros pertencem ao universo da criação e das derivas do espírito, pode então acontecer-nos apanhá-lo numa intranquilidade gulosa, como só um miúdo sabe denunciar. É aí que o véu da sua etiqueta nortenha deixa entrever as malhas de um entusiasmo de fundo, genuíno e muito fino. São os trilhos desse "pathos" que, de há muitos anos para cá, me tem dado gosto seguir com atenção, seja nos seus postos de político com responsabilidades executivas, seja na sua prestigiada carreira de gestor. Fez-me o balanço da sua vida, como um guionista de primeira água construiria o seu argumento auto-biográfico. De um só fôlego, com as pausas certas nos tempos certos. Do meu balanço resulta saber que, em Rui Vilar, o cultural é, inequivocamente, fundador do político. Não é saber pouco...
Maria João Seixas _ Rui, diz-me quem és e explica-me porque é que, sendo tu conhecido por Rui Vilar, quiseste que, para efeito desta "Conversa com Vista para...", ficasse inscrito o teu nome completo.Rui Vilar _ Emílio Rui é o meu nome próprio. Quanto ao quem sou, e para te responder "à Ortega", eu sou eu, mais uma boa dose de acaso e outra igual dose de teimosia. Se a pergunta é sobre a minha profissão, essa é uma das dificuldades que sinto, sempre que tenho que preencher impressos, porque já fiz várias coisas ao longo da vida e, na lista das profissões, aquelas que estarão mais próximas é empregado bancário e gestor. Mas se calhar sou outras coisas...P._ És formado em Direito e tens vivido afastado dessa formação de base. Cheguei a pensar que eras de Económicas. R._ Como muita gente. Há mesmo quem ache que sou engenheiro, por ter passado pelos Transportes. Formei-me em Direito, em Coimbra, fiz o estágio de advocacia e inscrevi-me na Ordem. Acabei o curso em Outubro de 1961, ano do início da guerra colonial. Em meados de 62 fui chamado para o serviço militar, Escola Prática de Cavalaria. Em meados de 63 fui para Angola. Entre o formar-me e ir para a tropa fiz uma parte do estágio, que acabei, já como militar, antes de embarcar para África. Quando regressei, em finais de 65, o meu destino provável era ser advogado no Porto.P._ Cidade onde nasceste...R._ Onde nasci, onde estudei até à Universidade, onde fiz o estágio de advocacia. Nessa altura não tinha muitas condições para começar uma carreira de advogado, por falta de apoios. Portanto, aquilo que seria a minha carreira provável não aconteceu. Vim para Lisboa e fiz outras coisas.P._ A vinda para Lisboa é um dos tais acasos?R._É um desses acasos. Vim a Lisboa procurar qualquer coisa que fazer. Falei com alguns amigos e colegas e, dessas conversas, surgiu a hipótese de ir para o Gabinete de Estudos e Planeamento dos Transportes Terrestres. E assim fiz alguns anos na função pública. Com a sorte de ter podido trabalhar com o Eng. Guimarães Lobato, de quem mais tarde vim a ser colega na Administração da Fundação, e com o Eng. Carlos Ribeiro, que foi Ministro das Comunicações e com quem muito aprendi. Tive ainda a sorte de me darem trabalho na área internacional, o que me fez viajar muito no fim dos anos 60, sobretudo para Paris, porque as reuniões eram na OCDE e na Conferência Europeia dos Ministros dos Transportes, sediada também junto do Secretariado da OCDE.P._ Foi um acaso dourado?R._Faz parte dos tais acasos dourados. Um belo dia, em 69, recebi um telefonema do Vasco Vieira de Almeida, que eu não conhecia, a perguntar-me se eu estava disponível para ter uma conversa com ele. O Vasco era, na altura, director-geral do Português do Atlântico. Encontrámo-nos e foi uma conversa engraçada porque, passado o primeiro minuto, pediu-me se podíamos falar em francês, logo a seguir em inglês e, no fim, convidou-me para ir trabalhar para o Banco. Estava a pensar numa coisa que agora se chama internacionalização, na altura não seria essa a palavra utilizada. E assim fui para o Banco Português do Atlântico, onde fiz a carreira toda. Comecei no balcão da agência de Almada, o que me custou, porque estar várias horas de pé a atender clientes não é tarefa fácil, sobretudo para um senhor doutor que já estava habituado a ter um gabinete.P._Tiveste que cumprir a tarimba toda?R._ Toda. Coisa que também foi uma enorme sorte, porque quando tive que mandar, anos mais tarde, sabia fazer aquilo que mandava fazer e sabia avaliar o trabalho de todas as áreas do Banco. Depois, voltei a ter sorte. Como o meu destino era o estrangeiro, fiz um estágio em Bruxelas, na Banque Lambert e outro, em Londres, no Rotschild, dois óptimos períodos de treino profissional e de abertura a novas ideias e métodos de trabalho. Quando terminei esta aprendizagem, volto para Portugal e envolvo-me, desde o início, na criação da SEDES, o que me desviou de uma eventual colocação no estrangeiro, ficando em Lisboa, como sub-director do Português do Atlântico.P._ Fala-me da aventura da criação da SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social), de que parece haver, hoje em dia, uma memória difusa.R._Pouco tempo depois de entrar no Português do Atlântico, em 69, há as primeiras eleições do Marcelismo. Logo a seguir começam as primeiras reuniões para se constituir a SEDES, com o cortejo de requerimentos, conversas e contactos, que não foram nada fáceis. O requerimento dá entrada em 70 e a autorização é concedida em 71, ano do início das actividades da Associação. Participei muito activamente nos preparativos para a sua fundação e fui eleito presidente do primeiro Conselho Coordenador. O António Sousa Gomes e eu chegámos mesmo a publicar um livro com a história da constituição e dos primeiros tempos da SEDES, editado pela Morais.P._Qual era o grupo inicial, quem eram os entusiastas fundadores da SEDES?R._Havia, à partida, duas grandes correntes - o grupo dos católicos progressistas, digo assim para simplificar, constituído pela gente do Encontro, como o António Sousa Gomes, o João Salgueiro, o José Pinto Correia, e outro grupo, dos que não eram católicos, como eu, mas que desde Coimbra mantinham um bom diálogo com essa "família". Uma das primeiras reuniões foi no atelier do Gonçalo Ribeiro Telles, depois houve outras, já na sede do CODES, que era uma Cooperativa para o Desenvolvimento, fórmula usada naquele tempo para escapar às limitações do direito de associação. Tive, nessa altura, muitos contactos com as Embaixadas em Lisboa. Sobretudo com a Embaixada inglesa e com a Embaixada americana, que prestaram muita atenção à SEDES. Havia contactos regulares, sempre muito discretos, encontros para trocas de impressões que se passavam, com frequência, ao fim da tarde e em bares pouco convencionais, ali para os lados da Rua Ivens e do São Carlos. Fui convidado, pelos ingleses, para ir a Wilton Park, dei nessa altura uma entrevista à BBC...P._Wilton Park?!R._Wilton Park é uma instituição inglesa muito interessante. Os ingleses lembraram-se, a seguir ao fim da guerra, que era preciso lançar as bases da reconciliação entre vencedores e vencidos e criaram um centro de debate, num sítio muito bonito, perto de Brighton, uma casa Tudor, perdida no meio do campo, onde começaram a fazer encontros de jornalistas, de intelectuais, de "opinion makers". A regra era haver sempre presenças dos dois lados. Para teres uma ideia de como esta regra era um imperativo, o primeiro reitor (o primeiro "Dean") de Wilton Park foi um alemão, professor em Oxford. Os seminários têm a duração de cinco dias, dorme-se, come-se e debate-se dentro daquela casa e há um princípio fundamental - tudo o que lá se passa é "off the record". Há uma grande liberdade, não circulam papéis, a ideia dominante é fazer com que as mais variadas pessoas se encontrem, discutam os seus pontos de vista e criem laços de entendimento e proximidade. P._Voltaste, depois do 25 de Abril, a Wilton Park?R._Sim, sim, três ou quatro vezes. A atmosfera é tão estimulante que há, em vários países, associações de antigos participantes nas conferências de Wilton Park. Mas... regressemos à SEDES. No início a Associação teve uma grande actividade, quer em Lisboa, quer nos núcleos que se foram constituindo, no Porto, na Covilhã, em Castelo Branco, em Coimbra, nas Caldas da Rainha, em Évora. Francisco Sá Carneiro e Artur Santos Silva foram dos primeiros a aderir, no Porto. Além de tudo o que era feito com os sócios, a SEDES convidou muita gente que foi falar aos nossos colóquios e produziu vários documentos como o "Portugal, para onde vais?". Todos nós tínhamos uma boa dose tecnocrática, o planeamento estava na moda, conhecíamos os relatórios encomendados pelo Governo de Chaban-Delmas a Jacques Delors e a Simon Nora, havia depois a corrente católica muito ligada ao Esprit, ao personalismo de Mounier e era toda essa combinação de pessoas e de mentalidades que constituía a SEDES, assim como gente vinda de outras zonas, gente que depois veio a aderir ao Partido Socialista, como o José Vera Jardim, o João Cravinho e o próprio António Guterres.P._O regime, tanto quanto me lembro, foi relativamente tolerante em relação à SEDES.R._ Os "ultras", não. Nunca nos toleraram. Houve inteR._enções do Cazal-Ribeiro na Assembleia da República muito violentas, tivemos sessões proibidas, eu publiquei um livrinho antes das eleições de 73 que foi apreendido. Chamava-se "Portugal 73 - Ano Político" e é uma das minhas coroas de glória - ter um livro apreendido pela Censura quase nas vésperas do 25 de Abril! Curiosamente há um número do "Avante" que se refere à SEDES, dizendo que a SEDES "é uma Associação a que há que prestar atenção, porque estão lá alguns bons democratas", o que, descodificado, queria dizer que havia na SEDES pessoas ligadas ao Partido Comunista. Veio a verificar-se ser verdade. Também havia monárquicos, como o Gonçalo Ribeiro Telles. Era, de facto, um espaço plural. P._1973 é um ano importante na tua vida e na tua formação política. O título do tal livrinho parecia premonitório.R._ Outros acasos... Em 73 o Vasco Vieira de Almeida sai do Atlântico e vai trabalhar com Manoel Boullosa, para a Banque Franco-Portugaise, em Paris. E desafia-me para ir. Quem também lá estava era o Francisco Veloso. Fui e a experiência foi óptima. Durante o dia éramos "jeunes cadres dynamiques", bem pagos e, à noite, eram as "manifs" e os "meetings", porque é em Setembro de 73 que se dá o golpe no Chile com a queda de Salvador Allende e nós participámos, activamente, nas manifestações, gritando os slogans da altura - " O Chile vencerá", " O povo unido, jamais será vencido", etc. Também foi nesse ano, sempre em Paris, que conheci alguns famosos exilados portugueses - Ayala, Palma Inácio... Para chegar até ele era preciso ultrapassar várias barreiras. Pela mão de António Alçada Baptista conheci Mário Soares, a quem transmiti a minha visão de Portugal, nada coincidente com a dele, porque eu acreditava no papel político de algumas pessoas como, por exemplo, Francisco Sá Carneiro, a quem Soares, na altura, não reconhecia essa importância e também lhe referi a minha opinião sobre os militares portugueses, não só da minha experiência em Angola, como também de algumas pontes estabelecidas na própria SEDES. Esses tempos em Paris são tempos muito interessantes, por tudo aquilo que estava a acontecer no mundo e pelas pessoas que tive a oportunidade de encontrar. P._ O 25 de Abril acontece contigo ainda em Paris?R._ Em 74 passava 15 dias em Paris, 15 dias em Lisboa. Era consultor da Franco-Portugaise e director-geral de uma sociedade de Manoel Boullosa, tendo sido nomeado secretário-geral do Crédito Predial. Estava cá no dia 25 de Abril. Entro no I Governo Provisório, como Secretário de Estado do Comércio Externo e do Turismo, apanho logo com aquela célebre declaração de Pereira de Moura sobre o turismo, que me obrigou a dar uma entrevista a dizer que o Governo defendia o turismo, etc...P._Como é que era a famosa frase de Francisco Pereira de Moura?R._Pereira de Moura era, na altura, Ministro sem Pasta e disse "o turismo é a prostituição de um país"!P._Quem era o teu Ministro?R._Vasco Vieira de Almeida, que acumulava a tutela das Finanças e da Economia. Depois dá-se a "crise Palma Carlos" e eu fiquei como Ministro da Economia, no II Governo. A seguir ao "28 de Setembro" toma posse o III Governo. Começa a preparação do "Plano Melo Antunes". Em Novembro de 74 pedi a demissão, porque fui atacado no jornal do MFA, por ser excessivamente conseR._ador. Eu defendia a aproximação à Europa, preparei uma viagem a Bruxelas, o Vice-Presidente da Comissão, Lord Soames, veio a Lisboa a meu convite... nada disto se enquadrava na linha ideológico-política do momento. Só não saí, na sequência do meu pedido de demissão, porque o General Costa Gomes chamou o General Vasco Gonçalves a Belém e disse-lhe que era indispensável que eu continuasse no Governo e que fosse a Bruxelas. Lord Soames veio a Lisboa em finais de Janeiro de 1975, deu-me um livro com uma dedicatória muito especial, porque se tinha dado conta do que por cá se estava então a passar... Os encontros que teve com Costa Gomes e Vasco Gonçalves, a que assisti, são inesquecíveis, com momentos tão delirantes como dramáticos. Reconheço que o General Costa Gomes era bastante diplomático e é uma das personalidades mais enigmáticas, mais polifacetadas dessa época. A grande tarefa da altura foi acabar o "Plano Melo Antunes", que se fez. O "Plano" foi considerado por Vasco Gonçalves "um Programa social-democrata", o que naqueles tempos queria dizer reaccionário, para não dizer coisas piores. Artur Portela Filho chamou-me, penso que no Diário de Lisboa, "o ventre mole da Democracia, passeando o seu fato listado pela Europa"... Lembro-me muito bem da conferência de imprensa de apresentação do "Plano", em finais de Fevereiro de 75, em que os jornalistas estrangeiros nos perguntavam o que é que nós achávamos das ocupações no Alentejo e nós tínhamos que dizer que não eram esses os objectivos daquele Programa. A seguir ao 11 de Março saí do Governo. Saí para o desemprego. Literalmente, porque me impediram de regressar ao meu lugar de base no Crédito Predial. Outra experiência nova. Vivi no desemprego, quimicamente puro, até ao 6º Governo. Atravessei o IV Governo (o das nacionalizações) e o V nessa situação.P._ O que é que fazias e o que é que inventaste como modo de sobrevivência? R._ Aproveitei para ler muito. Li os discursos do Salazar. Todos. Foi uma leitura exótica para a época. Fui muito ao cinema, lembro-me de ver, nesse Verão de 75, "O Conformista", de Bernardo Bertolucci. Gastei depressa as economias, porque o único trabalho que tive foi administrar uma empresa de elevadores, em Mem Martins, a convite da Comissão de Trabalhadores, que me conhecia do meu tempo do Banco. Aceitei ficar em part-time, porque o trabalho não exigia mais, com um vencimento insignificante, mas a fábrica continuou a laborar, pagaram-se sempre os salários, foi uma experiência muito positiva. A certa altura resolvi ir a Londres e a Bruxelas, procurar trabalho e arranjei um lugar na Banque Lambert, onde tinha feito um estágio. Preparava-me eu para ir para Bruxelas quando o "Grupo dos Nove" me contacta e me fala na preparação de um "Documento". Participo em reuniões para a formação de um célebre "Governo Fabião", que não chegou a existir, peço a Bruxelas que me conceda um mês para ver como as coisas evoluíam por cá, entretanto toma pose o VI Governo e sou convidado por Salgado Zenha e Artur Santos Silva para ir para o Banco de Portugal. No fim de Outubro de 75 digo aos meus amigos de Bruxelas que afinal já não preciso de ir. O 25 de Novembro já me apanha no Banco de Portugal.P._ Tenho dificuldade em imaginar-te à conversa com o General Vasco Gonçalves.R._ Eram conversas desabridas. Eu ripostava sempre e o General dizia-me muitas vezes "O senhor doutor é muito esperto, mas a História vencerá!". Os Conselhos de Ministros, naquela altura, eram também especiais, porque o Primeiro-Ministro estava, normalmente, silencioso. Quem dirigia as reuniões, geria a agenda e dava a palavra era o Major Vítor Alves.P._ Apanhaste, no Banco de Portugal, a fase complicada das primeiras vendas de ouro ou não é do teu tempo?R._ Apanhei isso e muito mais - lembra-te das crises financeiras da época, das dificuldades cambiais, etc. Em 76 volto a uma experiência política, porque sou convidado como candidato independente nas listas do PS e sou eleito deputado pelo Porto. Depois, no I Governo Constitucional, regresso aos Transportes, como Ministro, área por onde tinha praticamente começado a minha vida profissional. P._ E quando é que aderes ao PS?R._ Adiro ao Partido Socialista em Novembro de 76. Num período de uma certa crise. Na altura havia quatro Ministros independentes - Almeida Santos, António Sousa Gomes, Eduardo Pereira e eu. Aderimos todos num Congresso, a pedido do Primeiro-Ministro, para reforçar a coesão do Governo. Nesse Governo só ficou fora do PS o Costa Brás, que era militar e Ministro da Administração Interna. Nos Transportes, onde estive até Janeiro de 78, data da queda do I Governo, para além de ter apanhado com as greves todas e de ter que lidar com uma data de empresas em grandes dificuldades, fiz uma coisa de que me orgulho bastante e que foi uma aposta pessoal - criei, em finais de 76, o "passe social". Na altura ninguém acreditava que fosse possível. Está criado. É irreversível.P._ Há um dado momento em que parece teres tomado a decisão, também ela irreversível, de abandonares a vida político-partidária. Alguma razão especial e confessável?R._ Já não aceitei entrar no II Governo e, no fim de 78, princípio de 79, decidi afastar-me de toda a actividade partidária. Ainda fui eleito deputado outra vez, mas não cheguei a sentar-me na Assembleia. Decidi afastar-me, não só pela minha dificuldade em funcionar dentro da lógica e da mecânica do Partido, horrorizava-me só de pensar naquelas intermináveis reuniões à noite, mas também porque achei que me faltavam certas aptidões para continuar a ser Ministro. Era, às vezes, pouco hábil. Houve, por exemplo, naquela altura, uma grande polémica, a propósito da necessidade de construção de auto-estradas. Eu era contra. Os recursos financeiros eram escassos e eu apostava antes na renovação e aproveitamento das infraestruturas existentes, para fazer metropolitanos de superfície e para a melhoria da rede de transportes suburbanos. O tempo veio a dar-me razão, porque só dez anos depois, com a chegada dos fundos comunitários, é que foi possível lançar a rede de auto-estradas. Mas, na altura, ao dizer que era contra, fui pouco hábil, não percebi que estava a contrariar um sonho de algumas pessoas, embora essas mesmas pessoas também soubessem que o sonho não era realizável. De vez em quando Mário Soares perguntava-me - "Então, não há obras para inaugurar?" As explicações que eu dava sobre as minhas opções por investimentos mais ligeiros, que entendia serem os adequados à situação financeira do país e às necessidades das pessoas, não pareciam fazer sentido, nem ser do agrado geral. P._ Tomaste a decisão de sair do Governo mas ainda mexeste no interior do Partido?R._ Por pouco tempo. Com um pequeno grupo, de que faziam parte Francisco Sousa Tavares, Eduardo Marçal Grilo, Teresa Ambrósio e algumas outras pessoas, publicámos um documento, "Reflexão Militante", que fazia dois apelos: um, de ordem interna, à maior democracia interna no Partido; o outro, na área programática, em que insistíamos numa via social-democrata. Eu, nesse ano de 79, tinha já provocado um outro pequeno tumulto no PS, porque defendi a abertura do sector bancário à iniciativa privada. O PS foi contra. Para mim era evidente, porque tendo nós pedido a adesão à CEE, uma das grandes decisões do I Governo!, era preferível anteciparmo-nos e conduzirmos o processo de abertura dos mercados e de abertura dos sectores, do que termos de fazê-lo, depois, sob pressão externa. Foi, na altura, o que hoje se chamaria uma iniciativa politicamente incorrecta. Resolvi então, com toda a clareza, passar a concentrar-me exclusivamente na vida profissional. Estive no Banco de Portugal como Vice-Governador até finais de 84, em Janeiro de 85 vou para Presidente do Banco Espírito Santo, onde gostei imenso de trabalhar. Em Maio de 86, convidado por Cavaco Silva, vou para Bruxelas, para director-geral da Comissão Europeia. Fui assim um dos primeiros eurocratas portugueses. Estive lá três anos e meio. Gostei muito da experiência, sobretudo por ter podido ver a nossa adesão pelo outro lado. Viver em Bruxelas foi muito agradável mas, a partir de certa altura, o trabalho na Comissão começou a maçar-me, porque a Comissão é uma enorme burocracia. Nem se podem escolher as equipas com que se trabalha, porque há as composições e os equilíbrios nacionais. Fiz, entretanto, 50 anos e decidi regressar. Se continuasse por lá mais uns tempos podia acontecer acomodar-me, o que não me apetecia. Voltei e surge a nova etapa, sou convidado por Cavaco Silva para presidente da Caixa-Geral de Depósitos. Em Outubro de 89 venho para a Caixa, com a missão de preparar a Caixa para um mercado aberto e competitivo. Um belo desafio. Sou, nesse mesmo ano, convidado pela Secretária de Estado da Cultura, Teresa Gouveia, para preparar a Europália, que se realizou em 91. Outro desafio fantástico, preparado e executado com a ajuda de uma excelente equipa. Foi um belo exercício, o de mostrar ao exterior a cultura portuguesa na sua imensa variedade, desde as formas de expressão mais tradicionais até à criação artística contemporânea e à investigação científica.P._ Foi a primeira janela que Portugal abriu na Europa...R._ Foi. E foi uma janela rasgada e de muita qualidade. Tivemos mais de um milhão e duzentos mil visitantes. Foi sobretudo uma oportunidade formativa para muita gente, nas áreas da cultura. Muita gente que, desde aí, continua a trabalhar nesse campo com rigor e sucesso.P._ Entretanto a Caixa Geral estava a levantar a sua grandiosa nova sede?R._ Também tive que resolver esse problema. A enormíssima obra, na Av. João XXI, estava a meio. Ainda cortei 14.500m2 de construção, ainda pudemos dar à cidade de Lisboa uma rua e um jardim com um auditório ao ar livre e ainda sobrava espaço, espaço que resolvi tornar um espaço cultural.P._ A Culturgest?R._ Exacto. Daí surgiu a Culturgest. A Culturgest tem uma história mais antiga: estava-se a construir o Centro Cultural de Belém e eu escrevi uma carta ao Governo, fazendo uma sugestão para a futura gestão daquele Centro, depois de acabada a Presidência portuguesa. A Caixa estava disposta a constituir, com parceiros europeus e americanos, uma empresa para se candidatar à gestão do CCB, se o Governo entendesse que devia ter uma gestão privada e quisesse abrir um concurso para que uma entidade, exterior ao Estado, pudesse gerir aquele espaço. Nunca recebi resposta, mas aproveitei o que na altura tinha pensado sobre uma empresa de gestão de um espaço cultural, para aplicar aos espaços livres da Caixa. Havia, inicialmente, a ideia de se fazer um Museu da Caixa, que não me parecia ser de grande interesse, aquele grande auditório estava destinado à formação, o que era manifestamente inadequado e bastou uma revisão do projecto de arquitectura e a compra de alguns equipamentos, como uma teia de teatro, para fazer uma boa sala de espectáculos polivalente, os espaços do Museu foram transformados em galerias de exposição, o Centro de Documentação passou a ser uma Mediateca aberta ao público, pedi uma avaliação da colecção da Caixa e, com um curador de grande critério, Fernando Calhau, prossegui com novas aquisições e, finalmente, propus a criação da Culturgest, que veio a ser formada só pela CGD e pela Fundação Luso-Americana. Lembro-me muito bem de quando propus a Culturgest ao Conselho. Tive uma aprovação de silêncio. Os meus colegas não me disseram nem que sim, nem que não. Como não me disseram que não, fez-se. A aposta estava certa. A Culturgest foi e é um sucesso. Foi um dos elementos que mais ajudou a todo aquele esforço que estávamos a fazer para mudar a imagem da instituição bancária e para tornar aquele enorme edifício num edifício com que a cidade e a comunidade entrassem em diálogo.P._ Depois do que já me disseste sobre o teu percurso público e sobre a forma como tens gerido a tua acção e a tua imagem, tão firme quanto discreta, estar agora no Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian é estar num sítio de eleição.R._ É. Acho que tive na vida muitos acasos improváveis e estar na Fundação Gulbenkian foi também um acaso improvável, que me está a dar a oportunidade de fazer coisas que gosto de fazer. Estou a gerir os recursos da Fundação, tanto os financeiros como os do petróleo, estou a procurar contribuir para reforçar os meios de acção da Fundação e tenho uma actividade nos domínios culturais, onde sempre gostei de trabalhar.P._ Nesse teu esforço relativamente à gestão dos recursos financeiros e petrolíferos da Fundação, não perdes nunca de vista o desígnio do fundador, do Senhor Calouste Gulbenkian, que é a aplicação, se possível reforçada, nas áreas culturais e científicas?R._ Não seria desejável, nem seria possível. Os recursos da Fundação têm uma missão, que é serem aplicados naquelas grandes áreas, que são os fins para que o fundador a criou e que foram por ele muito bem definidos. O papel de uma Fundação, sobretudo de uma grande Fundação na sociedade portuguesa é, em síntese, contribuir para antecipar o futuro e dar meios aos portugueses, e às instituições portuguesas, para criarem aptidões para a mudança. Esse é que é o papel de uma Fundação como a Gulbenkian. Quando nasceu, historicamente, a Fundação Gulbenkian foi supletiva de um Estado carregado de carências. Hoje, porque o país mudou, a Fundação pode ser muito mais um contributo para inovar e abrir caminhos.P._ A antecipação do futuro pressupõe também uma aposta nas vanguardas...R._ Essa é a grande vantagem de uma instituição privada em relação ao Estado. Uma instituição privada não está sujeita a critérios de legalidade, nem de distribuição equitativa como está o Estado, podendo fazer apostas e correr riscos que o Estado não pode correr. P._ Da excelente e regular programação da Gulbenkian, nas várias áreas que elege, não ressalta como óbvio esse "correr riscos". Mesmo no Acarte já houve épocas mais corajosas e férteis. Aqui há poucos anos também correram umas notícias inquietantes, que apontavam para uma espécie de nuvens negras a pairar sobre cortes de verbas para as actividades artísticas e culturais da Gulbenkian. Eram notícias infundamentadas ou as nuvens foram varridas do horizonte?R._ Penso que eram notícias sem fundamento. A solidez financeira da Fundação está hoje reforçada e estamos, neste momento, a fazer um debate interno muito interessante, para a inteR._enção em novas áreas, em novos domínios, com metodologias diferentes.P._ Fico muito contente com essa informação. Deixa-me ser nostálgica e dizer-te que tenho as maiores saudades dos espantosos Ciclos de Cinema da Gulbenkian, organizados por João Bénard da Costa. Bem sei que esse trabalho compete agora à Cinemateca, mas os Ciclos no Grande Auditório e os espantosos catálogos que os acompanhavam eram outra coisa.[Rui Vilar prestou-se, com grande delicadeza, a desfiar para o meu gravador memórias espantosas dos seus tempos de Coimbra, da importância que a guerra da Argélia teve na sua formação política universitária, do seu grande envolvimento e paixão pelo teatro, dos seus gostos literários, das suas preferências no campo das artes plásticas, da comissão militar cumprida integralmente em Angola, dos ensinamentos que aí recebeu e da nova visão que então ganhou sobre a complexa questão colonial. Citou Pico della Mirandola - "Homo sum et nihil humanum a me alienum puto" ( Sou homem e nada do que é humano considero estranho) e citou também Albert Camus - "Acredito na justiça, mas defendo a minha mãe antes da justiça!" (resposta dada por Camus a um jornalista que o questionou sobre a guerra da Argélia, quando, em 1957, recebeu o Prémio Nobel da Literatura). Della Mirandola e Camus são duas referências culturais e éticas que guarda dentro de si como pilares fundadores, entre outros, do modo como tem seguido a rota da vida. Por imperativos de espaço não me foi dado reproduzir, aqui, essas e outras belíssimas divagações do meu Conversado deste primeiro domingo do novo século, do novo milénio.]P._ - Para terminar, dá-me a tua palavra de eleição.R._ - Água. Em Coimbra, um dia, num grupo de amigos meus fizemos uma espécie de concurso para saber qual era a palavra mais bonita da língua portuguesa. A escolhida por mim foi "água". Água é uma palavra muito bela, esdrúxula, como todas as últimas palavras dos versos do poema de Chico Buarque da Holanda. É a "Casta Soror Acqua" de S. Francisco de Assis. É também uma palavra de poetas - "If I were called in/ To construct a religion/ I should make use of water" (Se me pedissem/ Para criar uma religião/ Teria que recorrer à água ) de Philip Larkin. Por outro lado, a água é hoje um dos problemas decisivos para o futuro da Humanidade. A vida nasceu no meio aquático. Se não respeitarmos equilíbrios essenciais e se não salvarmos este elemento fundamental podemos pôr em causa o futuro da nossa própria existência e da vida. Água é, definitivamente, a minha palavra de eleição.