Nicolas Cage, sem desculpas
Ninguém faz papéis excessivos como ele, mas enquanto alguns elogiam a sua coragem, outros lamentam a sua falta de comedimento. Ele não apresenta desculpas. Retrato de Nicolas Cage, tirado durante a rodagem do último filme de John Woo.
Em Oahu, no Hawai, Nicolas Cage está sentado num coqueiral, preparando-se para ver homens a morrer. Faz calor no "set" de "Windtalkers", do realizador John Woo, drama da II Guerra Mundial sobre um grupo de fuzileiros navais norte-americanos encarregues de proteger especialistas de codificação em navajo no Pacífico. Cage está na caixa de um camião de transporte de tropas, em silêncio, aguardando a sua deixa. De tão descontraído, o seu rosto quase parece inexpressivo. Os outros actores que também estão no camião conversam para passar o tempo, mas Cage vira ligeiramente o corpo e olha para o chão. Não está abstracto. Não há qualquer hostilidade ou desdém na forma como se mantém silencioso. Enquanto uma poeira avermelhada assenta no seu uniforme castanho, na espingarda, no cinturão de munições e no capacete, Cage está simplesmente noutro lugar, preparando-se.A cena de batalha, altamente coreografada, é o tipo de cenas que tornaram Woo famoso, e são precisos alguns minutos para dispor a coluna de veículos militares, reverificar os explosivos e preparar as dezenas de figurantes para a acção. Finalmente satisfeito com os aspectos logísticos, Woo diz que chegou o momento de gravar a cena. Vira-se para um dos seus seis operadores de câmara, aquele que vai filmar o grande plano de Cage."Quero ver os olhos dele", diz em voz baixa - e Woo sabe do que fala, basta ver o que fez com eles em "Face/Off".O olhar de Nic Cage. Todos os que o conhecem falam dele, embora nem sempre da mesma maneira. Nele há tristeza - neste ponto, toda a gente está de acordo -, mas também encerra uma ânsia de felicidade. Pode ser tresloucado ou inseguro ou ferozmente determinado. E quando ele perde mesmo as estribeiras na tela, como já fez mais vezes (e duma forma mais comovente) do que porventura qualquer outro actor americano, aqueles olhos azuis enquadrados por um sobrancelhas densas traem uma espécie de mania que lhes é simultaneamente exterior e estranhamente próxima. Mais do que o seu carisma, o seu sentido de oportunidade cómico ou a impressionante esbeltez do seu corpo, foram os olhos de Nic Cage que fizeram dele cabeça-de-cartaz, uma super-estrela cheia de alma.O maior. "O Nic transmite, na minha opinião, uma sinceridade e uma integridade incríveis", disse Stacey Snider, presidente da Universal Pictures, que aposta no carisma de Cage para a fantasia romântica "The Family Man", que estreou a 22 de Dezembro nos EUA, e para o romance histórico "Captain Corelli's Mandolin", que estreará este ano. "The Family Man" é a história quase natalícia de um dinâmico corretor de sucesso a quem é dada a hipótese de vislumbrar o caminho da vida familiar não empreendido quando é lançado numa vida nova, já com mulher (Tea Leoni), filhos e uma carrinha."Não sei que outra pessoa poderia convencer-nos de que realmente não sabe de quem é a casa onde está, quem é o pai daquelas crianças, quem é o marido daquela mulher", disse Snider. "A forma como ele diz as suas deixas, com aquela perplexidade típica do Nic Cage... é absolutamente credível".Brett Ratner, de 30 anos, o realizador do êxito de bilheteira "Rush Hour", de 1998, persuadiu um Cage relutante a fazer "The Family Man", a primeira comédia romântica do actor desde "It Could Happen to You", de 1994. Ratner diz considerar desde há muito que Cage é "o maior", mas qui-lo especialmente para este filme porque acha que Cage consegue estabelecer uma ligação emocional especial com as mulheres."Em qualquer filme em que ele contracene com uma mulher - 'Raising Arizona', 'O Feitiço da Lua' - há uma química", disse Ratner. "É um anti-herói, porque não é muito bonito nem automaticamente encantador. E é capaz de exprimir os momentos de frustração que toda a gente tem. Quando vemos aqueles velhos filmes com o Jimmy Stewart, havia ali uma grandeza... Cage tem essa mesma qualidade antiquada".Sem desculpas. Com quase 20 anos de experiência no cinema, Cage, com 36 anos, é um dos poucos actores abaixo dos 40 que tem direito a uma crise de meia-idade. Ninguém faz papéis excessivos como ele, mas enquanto alguns críticos elogiaram a sua coragem, outros lamentam a sua falta de comedimento. E há ainda aqueles que, como o seu amigo Sean Penn, o acusaram de vender o seu talento por um bom "cachet". O facto é que Cage, a seguir a ter ganho o Óscar de melhor actor (com o drama deprimente "Morrer em Las Vegas", de 1995), fez três filmes de acção de enfiada, e o seu trabalho mais recente - o dispensável (embora popular) "Gone in 60 Seconds" - vem na mesma linha.Cage não se desculpa pelo seu preço (20 milhões de dólares) nem pelas suas opções. Acha que os filmes de acção escapistas "só para estímulo" são tão legítimos como aqueles que levam à auto-análise. Defende os seus filmes menos vistos, "Snake Eyes", de Brian De Palma, e "Bringing Out the Dead", de Martin Scorsese, cujo fracasso de bilheteira atribui a campanhas de "marketing" que erradamente os promoveram como filmes de acção. Acha que o muito criticado "8mm" - um filme de 1999 sobre a luta de um detective particular para determinar a autenticidade de um filme pornográfico em que um dos actores é morto - é uma exploração válida da descida de um homem bom aos infernos."Pega num homem comum e transforma-o em algo de grotesco", disse Cage. "Há algum tempo que não o vejo, mas fiquei muito satisfeito com o resultado".O facto de Cage estar satisfeito com um filme que os críticos consideraram aviltante e misógino diz muito sobre o que determina não só as suas opções pós-Óscar como a sua própria forma de representar. Cage tem um fascínio por heróis improváveis. Em criança, gostava de livros aos quadradinhos, em particular dos personagens que retiravam a sua força do sofrimento. ("Esses são os melhores", disse, rindo. "Aqueles que se transformam em monstros e que não se conseguem controlar ou têm uma espécie de capacidade mutante, radioactiva") Já pensou em fazer de Super Homem, mas só se pudesse torná-lo excêntrico, deixando para trás a imagem de "perfeito cidadão americano" do Homem de Aço. "Afinal de contas, ele é um extraterrestre", disse Cage.Cage gosta de "outsiders". Quando era um jovem actor, colava as suas críticas mais severas num álbum, como prova de que - como outros artistas que admirava - tinha feito algo que desencadeara repercussões. Há uma contradição intelectual do tipo "o mau é bom" em Cage, cuja vida tem sido um estudo sobre a exclusão.Não se pense, porém, que as coisas lhe sejam indiferentes. Quer faça de um alcoólico autodestrutivo em "Morrer em Las Vegas", de um cantor de ópera aleijado em "O Feitiço da Lua", de um anjo apaixonado em "City of Angels" ou de um "yuppie" toxicodependente em "Vampire's Kiss", Cage leva o seu trabalho muito a sério. É claro que o dinheiro sabe bem, e este apreciador de carros velozes, arte moderna e bons vinhos adora gastá-lo.Mas representar, para Cage, não é só isso. O método do actor é quase literário: desconstrói as personagens na esperança de alcançar não só uma representação melhor mas uma verdade mais absoluta. Fazer filmes - tanto os mais profundos como os mais ligeiros - permite-lhe explorar a difícil questão do que é ser humano.