O fim do grande estaleiro

A Lisnave termina hoje um ciclo, o da Margueira, e inicia outro, o da Mitrena. A indústria de construção e reparação naval despede-se daquele que foi considerado um dos melhores estaleiros a nível mundial e que possuía a maior doca do mundo. Nestas páginas, o PÚBLICO conta o passado e o futuro da Margueira - o polémico empreendimento imobiliário "Manhattan de Cacilhas" -, narra a onda de desolação que se vivia dias antes da desactivação do estaleiro e descreve a nova Mitrena, onde se concentra agora toda a actividade da Lisnave.

Quando se ouvirem as doze badaladas a anunciarem a entrada no século XXI, fecham-se, para sempre, as portas do estaleiro da Margueira, onde a Lisnave, durante 33 anos, reparou 5200 navios. O fim anunciado leva também consigo a histórica doca número 13, inaugurada em 23 de Junho de 1971, data do aniversário de Alfredo da Silva, o grande empresário da Companhia União Fabril (CUF) que, em 1937, obteve a concessão do estaleiro da Rocha que 24 anos mais tarde daria origem à Lisnave. O fecho da número 13 é um marco histórico porque, muito simplesmente, era a maior doca seca do mundo, com capacidade para navios até um milhão de toneladas, uma verdadeira utopia, diz quem sabe, pois a maior embarcação do mundo (o navio chinês "Cy Tung") tem 650 mil toneladas. Esta desactivação é vista por uns como uma consequência da forte concorrência no mercado internacional de reparação naval, não justificando, assim, a manutenção de dois estaleiros tão próximos (Margueira e Mitrena) e, por outros, como uma "cedência" ao potencial imobiliário dos 49 hectares de aterro, para onde já foi idealizado o projecto que ficou conhecido por "Manhattan de Cacilhas" (ver texto nestas páginas).As obras da Margueira arrancaram a 6 de Abril de 1964, precisamente quando se cumpriam dez anos do requerimento de Manuel de Mello para a construção de um grande estaleiro no porto de Lisboa, que ficariam concluídas três anos mais tarde. De acordo com informações recolhidas pelo PÚBLICO junto de Miguel Faria, que coordena uma equipa de cinco historiadores que estão a fazer um livro sobre a história da Lisnave, na altura terão sido investidos cerca de 750 mil contos na construção do estaleiro da Margueira. O cálculo feito poderá não ser muito rigoroso, mas estima-se que, nos dias que correm, estivéssemos perante um investimento da ordem dos 35 milhões de contos. Hoje, desaparecem ainda outras três docas, duas com capacidade para navios até 325 mil toneladas e uma outra até cem mil. Foi precisamente numa destas docas, a número 11, que foi reparado o primeiro navio - o "Índia" - no estaleiro da Margueira. Da doca Alfredo da Silva saiu, a 16 do corrente mês, o "Paola I", a última embarcação a ser reparada na Margueira. Para Miguel Faria, professor de História na Universidade Autónoma de Lisboa, a desactivação do estaleiro "marca o fim de um ciclo", depois de, nos anos 60, ter demonstrado ser "um projecto avançado no tempo e para o país". O historiador explica ainda que se trata de "uma empresa-símbolo, porque foi das poucas experiências empresariais que obteve livrança mundial". Para a actual administração da Lisnave, a "localização privilegiada no cruzamento das principais rotas do tráfego mundial de petróleo, aliada a boas condições climatéricas e a um crescente 'know-how'", permitiram que a Margueira, "rapidamente, passasse a ser um grande centro de reparação naval a nível mundial, marcando social e financeiramente todo o desenvolvimento da zona Sul".A Comissão de Trabalhadores, pela voz de Jerónimo Matias, "vê com grande emoção e tristeza o encerramento da Margueira, que, desde os anos 60 até hoje, foi um dos melhores estaleiros do mundo" (ver texto na página seguinte). No entanto, a comissão, que representa os actuais 1200 trabalhadores da Lisnave, afirma que estes estão "confiantes e tranquilos com o futuro da empresa" pois, só este ano, foram reparados 148 navios, o que representa uma carteira de encomendas da ordem dos 20 milhões de contos. Duarte Silva, que falou ao PÚBLICO na qualidade de presidente da Associação das Indústrias Marítimas, lamentou "que a indústria tivesse chegado a esta situação, em que um dos melhores estaleiros do mundo para a reparação naval tem de fechar". A desactivação da Margueira e transferência da actividade da Lisnave para a Mitrena foi decidida em 1993, ao abrigo do primeiro acordo de reestruturação entre o Estado e o grupo Mello. Para Duarte Silva, este encerramento não deixa, no entanto, de estar relacionado "com a concorrência feroz de países do Pacífico", destruindo assim aquilo que considerou ser "a jóia da coroa do grupo CUF nos anos 60".

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