A culpa (não) é do mordomo
"Quando Éramos Órfãos" é um romance pleno de ressonâncias da própria obra de Kazuo Ishiguro, o autor de "os Despojos do Dia". Perdeu o Booker Prize deste ano, mas ainda é candidato ao Whitbread.
Esclareça-se, desde já, que não há qualquer mordomo no quinto romance de Kazuo Ishiguro, "Quando Éramos Órfãos", não vá algum leitor dedicado julgar que o mais proeminente autor japonês de Inglaterra (ou será ao contrário?) se anda a repetir. É certo que desde a estreia, em 1982, com "A Pale View of Hills", os livros de Ishiguro nunca mudaram muito de cenário (entre o Japão, pátria efectiva e imaginada, onde o escritor regressou uma vez, em 1989, para promover o 'bestseller' "Os Despojos do Dia", e a Inglaterra, pátria de adopção, onde reside há 40 anos), sempre preferiram a aura histórica de outros tempos (insistindo na II Guerra Mundial como ponto de referência) à actualidade, e todos contam com um narrador na primeira pessoa exercitando a memória apenas para concluir que a vida se perdeu. Mas isso é uma revelação rigorosamente deixada para as últimas páginas dos livros, porque até lá ficamos reféns, como as vozes narrativas, dessa típica mistura de ingenuidade e auto-complacência que acompanha a travessia memorialista. É o que alguns chamam de "unreliable narration", qualquer coisa como "narrativa pouco fiável" - e, quanto a isso, a protagonista de "A Pale View of Hills" (Faber), já deixara o aviso: "Memory, I realize, can be an unreliable thing" (p. 40) -, mas a notável prosa de Ishiguro, definida algures entre o absurdo e uma elegância anacrónica, arranja sempre forma de nos "desentocar", como diria o protagonista de "Quando Éramos Órfãos".Afinal, não há razão nenhuma para duvidar que o jovem licenciado de Cambridge Christopher Banks, que alimenta a "secreta ambição" de ser tão famoso quanto Sherlock Holmes, se tornará na "mente investigadora mais brilhante de Inglaterra" nos anos 30 (com lupa e tudo). Simplesmente, o sucessor do monumental "Os Inconsolados" (1995) não é um romance policial, ainda que possa parecê-lo. É certo que o tom não desmerece as narrações prodigiosas a que o herói de Conan Doyle nos habituou - "Já tinha compreendido, evidentemente, que a tarefa de erradicar o mal nas suas formas mais tortuosas (...) é um empreendimento crucial e importante." (p. 34) - e que, apesar de todas as precauções, o jovem Banks terá "baixado a guarda" por duas vezes na escola, deixando antever as suas ambições detectivescas, e afligido a tia com demonstrações de "introspecção" perscrutando fetos húmidos. Mas dificilmente se encontrará um detective que tenha integrado tão bem os eventos sociais elegantes de Londres quanto Christopher Banks. Ele próprio acabará por admitir a sua singular frivolidade - "O que eu desconhecia, nessa altura, era que, neste país, os detectives não costumam participar em reuniões sociais" (p.18) - e concentrar-se no triunfo público das suas investigações. Estas, no entanto, não vão além de modestas alusões ao "caso Mannering" ou ao "caso de Studley Grange", sem que jamais possamos vê-lo em acção, seguindo uma pista até ao fim, aquilo que, seguramente, ele chamaria o "denouement". Bom, não é tanto assim: seguimo-lo até Xangai, para resolver o caso da sua vida, não exactamente por potenciar a consagração profissional (embora ele não rejeite uma cerimónia com tenda e palco no parque), mas por se tratar da recuperação da infância perdida após o desaparecimento dos pais. Ainda que tenham passado 25 anos após a sua ida para Inglaterra, Banks mantém a teimosa convicção de que os seus progenitores foram raptados e têm sido mantidos numa casa em plena linha de fogo entre os invasores japoneses e o Kuomitang. "Nunca é demasiado tarde para descobrir a pista" (p. 38), garantira Banks muito antes do desembarque em Xangai, mas a sua inabalável fortaleza de princípios é devastada por uma surrealista e decepcionante revelação. Para o detective e para o leitor: talvez fosse preferível que o misterioso "sequestro" dos pais de Banks, de tão implausível e descuidado que é, permanecesse à guarda do sossego empoeirado da Sala de Leitura do Museu Britânico, onde o herói acaba os dias lendo antigas notícias de jornais sobre os seus casos. Ou, por veleidades antológicas, poder-se-ia atribuir a culpa ao mordomo. Imagine-se o rectíssimo Mr. Stevens de "Os Despojos do Dia" atravessando a China ao volante do Ford do seu patrão, debatendo-se com a sua eterna crise de identidade, indiferente aos ruídos dos prisioneiros na bagageira do carro...Curiosamente, à excepção das memoráveis digressões de Banks pela sua infância em Xangai e pelos jogos detectivescos com o amigo japonês Akira (delicioso o episódio em que os dois entram nos aposentos de um criado para roubar a "loção mágica" que transforma mãos decepadas em aranhas), o melhor do último livro de Ishiguro reside na consolidação do seu estilo. Isto é, num sentido crítico do que significa ser "British", simultaneamente cúmplice e ridicularizador, que passa não só pelo declarado "comedimento emocional de que só a raça inglesa é capaz", como Stevens já dera conta em "Os Despojos do Dia" (p.40), mas também por um laborioso trabalho com a linguagem, reactivando expressões do inglês vernacular. O beijo desajeitado de Banks à sua platónica amada é um duplo exemplo: "Depois, beijámo-nos - como, bem, como, suponho, um par no écran do cinema. Foi quase exactamente como eu sempre imaginara que seria, só que havia alguma coisa estranhamente deselegante no nosso abraço e eu tentei mais de uma vez ajustar a minha posição mas o meu pé direito estava encostado com força a uma caixa pesada e não conseguia efectuar o movimento necessário sem pôr em risco o meu equilíbro." (p. 222)E não deixa de ser sintomático que um romance pleno de ressonâncias da própria obra de Ishiguro (não são só nomes como Etsuko e Akira que se repetem, mas também situações: é impossível ler a carta de Sarah Hemmings no final sem lembrar o encontro entre Miss Kenton e Mr. Stevens em "Os Despojos do Dia") se intitule "Quando Éramos Órfãos": a expressão sintetiza todas as figuras solitárias e desencantadas da produção narrativa do autor, sugerindo que a incapacidade do mordomo para pôr em causa a sua "dignidade em harmonia com a profissão" é endémica num mundo onde o sentimento de orfandade parece irreparável.