Iris Murdoch
"Quem é o nosso primeiro amor?", escreveu Iris Murdoch com tanta força que quase rasgou o papel. O seu último livro publicado em Portugal chama-se "O Tempo dos Anjos". Retrato tirado de dentro por Ana Teresa Pereira.
Para onde vão os pássaros quando morrem, porque é que os seus livros estavam cheios de pássaros e de aranhas, e de deuses, os deuses estavam em toda a parte, como dissera Heráclito, e os anjos, e os monstros, monstros mutilados, "maimed monsters", tinham a mesma realidade que as pedras, as rosas, o velho vaso no canto do estúdio, ela mesma, o vulto esguio, o cabelo longo e pesado, a túnica azul que podia ser um vestido de noite ou uma camisa de dormir, o colar de pérolas e rubis, os pés descalços, não tocava o chão ao caminhar, era uma deusa indiana... e as suas mãos... as unhas estavam sujas... escrevera há pouco, com tanta força que quase rasgara o papel, "Who is one's first love..."- Quem é o nosso primeiro amor? - disse a mulher baixinho.Pousou a caneta e colocou a página, a última, sobre o monte de papel. Estava frio, muito frio, tinha a impressão de que há algum tempo não ouvia o barulho das ondas, e sentia medo de olhar a vidraça humedecida, "há castigos terríveis para os crimes contra os deuses..." Lá fora não se via o mar, azul e cinzento, em transformação como todas as coisas eternas, gerando peixes e gaivotas, monstros de olhos verdes. Não estava no quarto de dormir nem na sala de estar. Mas também não era o quarto do rés-do-chão, de onde se via o pátio rodeado de rochas, no qual fizera desenhos com as pedras que trazia todos os dias para casa.A mulher sorriu. Não, não era ela que o fazia, era Charles. Tinham vivido tanto tempo juntos que já não podia separar-se dele, ele que a amava embora estivesse velha e com medo, ele que ainda achava os seus seios lindos. Mas Charles vendera a casa e agora estavam... onde...Do outro lado da vidraça, viu o jardim, cinzento como neblina, as roseiras mortas, um muro. "Cedar Lodge", o seu centro de lama, o seu canto... Terminara o livro e estava sozinha. Passou a mão pelo cabelo, cortado curto, alisou inconscientemente a camisola branca e a saia com flores pequeninas, cinzentas e brancas. No quarto cheio de livros pairava um leve cheiro a incenso; encostou-se a uma estante e as suas mãos percorreram as lombadas cobertas de pó, conhecia-os por instinto, "Alice in Wonderland", os poemas de Rupert Brooke. Folheou um álbum de Ticiano, "O Castigo de Mársias", o "seu" quadro, aquele sorriso terrível... havia um pintor que queria fazer-lhe o retrato tendo-o por fundo. Algumas páginas à frente "Perseu e Andrómeda", seria perfeito para a capa... O livro de Piero della Francesca abriu-se naturalmente, "A Ressurreição", como amava aquele Cristo, o rosto... Fora um dos seus "maimed monsters", um padre, chamava-se Carel, era um poço negro, vivia numa casa cercada de nevoeiro, ouvia o "Lago dos Cisnes", não acreditava em Deus mas sentia a presença dos anjos, "só podemos amar um anjo, e essa coisa terrível não é amor, aqueles com quem os anjos comunicam estão perdidos"; e na casa havia uma jovem que passava os dias fechada num quarto a tecer uma teia e a fazer amor, e um porteiro russo que só possuía duas coisas, uma planta que não gostava de luz nem de água e um velho ícone... a "Trindade" de Andrei Rubliov, os anjos, "eles deviam ser tão altos"; os anjos predadores, a ausência de Deus num mundo sem vento, a proximidade do escuro, "que a escuridão seja o nosso espelho", e aquilo de que somos feitos, a dor, a pessoa que amamos e que não nos amou, o cão que morreu quando tínhamos cinco anos".Sobressaltou-se ao ouvir passos na escada.- Carel - murmurou.Mas Carel morrera há muito tempo, tomara um frasco de comprimidos para dormir e pusera no gira-discos o "Lago dos Cisnes"... Ele agora tomara outra forma, Charles ou James, quem é o nosso primeiro amor...- Iris.Iris, mensageira dos deuses; olhou com perplexidade o homem parado no umbral, por momentos não o reconheceu. Depois lembrou-se, quase riu alto. Não casara com ele, com o seu deus monstro, nem com um dos inumeráveis amantes nos quais julgara encontrar o seu reflexo, na mente, no rosto, nas mãos, casara com o homem que ficava debaixo da janela enquanto fazia amor com os outros.- Estou cansada. Vou dar um passeio no jardim.Quase correu pelas escadas abaixo, mergulhou no jardim húmido, como a casa, pouco a pouco sentiu que estava de volta, as roseiras mortas, a "unofficial rose" que florescia sempre, sem precisar de quaisquer cuidados, as pedras que trouxera de todos os lugares onde fora para lhes dar uma casa, para aconchegá-las, tudo devia ter uma casa, nada deveria estar... tão sozinho.Era insuportável pensar que o perdera mais uma vez, Charles ou James, ficara na casa de praia, ou num apartamento em Londres cheio de budas, livros e demónios, como anos atrás ficara na reitoria de uma igreja inexistente, numa estação de caminho-de-ferro, numa vivenda de pedra no meio dos pântanos. Roçou a mão pelos ramos secos de uma roseira, depois pegou numa pedra pequenina, cinzenta, com traços azuis, e encostou-a ao peito.Talvez pudesse começar de novo. Procurá-lo, modelá-lo, o seu corpo, as suas mãos, já não era belo, estava numa torre, no quarto de cima de uma torre, moribundo, e alguém subia as escadas ao seu encontro; e via a casa, como uma catedral ou um navio, uma construção estranha, monstruosa. E as suas mãos, era um pouco mais jovem e as suas mãos tocavam no corpo de um homem que já morrera, e trazia-o de volta à vida, e agora estava sentado junto a uma pedra enorme, cheia de divindade, como ele, e estava tão sozinho, nunca um deus estivera tão sozinho, um monstro ferido, que falava a linguagem dos pássaros e tinha forças para mover montanhas mas nunca sentira o amor.Voltou a colocar a pedra no lugar, entre duas outras, e caminhou lentamente de regresso à casa. E algo parecido com a felicidade... Ele existia, num devir que ela só tinha de procurar, para ele inventaria casas com aranhas nos cantos, e pássaros, e homens que queriam ser bons e se transformavam em demónios, e mulheres que procuravam o amor, e o mar, sempre... para poder criá-lo outra vez, o seu deus monstro, para modelar o seu rosto, o seu corpo, as suas mãos, voltaria a tirá-lo de si, era nos livros que o reencontrava, e ainda havia tantos livros, queria entrar de novo no seu mundo, um mundo negro, um globo negro onde tudo estava ligado, Wittgenstein, duas personagens que falavam de Wittgenstein, quem é o nosso primeiro amor...O último livro de Iris Murdoch a ser publicado em Portugal foi "The Time of the Angels", "O Tempo dos Anjos", na Europa-América.