Quando a montanha mata
O desmoronamento de terras que, no passado dia 7, provocou a morte a quatro habitantes da aldeia de Frades, no concelho de Arcos de Valdevez, ficou a dever-se à infeliz conjugação de uma série de factores de ordem climática e geomorfológica. Mas podia ter sido evitado se houvesse em Portugal uma carta com as áreas de maior risco potencial à ocorrência de acidentes naturais, baseada, fundamentalmente, na inclinação das vertentes e nas suas características geológicas. Mas não existe.
Helena Barbosa estava na horta, ao fundo da aldeia, quando algo "rebentou como um tiro" no alto da encosta. Pensou em duas coisas: ou foi o Penedo Beiro (um grande rochedo que está suspenso na montanha, "como um pião") que se desprendeu ou foi um tremor de terra. Olhou para cima e só viu uma enorme massa de água, lama e pedras a deslizar encosta abaixo "como as ondas do mar". "Apanhava um cachão e fazia aquele galão como as ondas!" Uma coisa assustadora, tão assustadora que Helena ficou em estado de choque, sem conseguir mexer-se ou ouvir os gritos da filha para que fugisse. Nem dois minutos demorou até que a gigantesca enxurrada chegasse já quebrada a escassos metros da horta onde se encontrava. Mas Helena não teve tempo nem espírito para respirar de alívio. Como podia ter, se acabara de ver as casas de alguns vizinhos e os próprios vizinhos a serem "embrulhados" pela torrente e arrastados como placas de esferovite? Quando tudo terminou e a população de Frades, aldeia do concelho minhoto de Arcos de Valdevez, pôde fazer o balanço da tragédia, sobrou uma aldeia com menos cinco habitações, com quatro mortos para chorar e uma pergunta sem resposta: o que levou a montanha a mover-se? Não foi o Penedo Beiro que se desprendeu, nem foi um tremor de terra, nem tão-pouco uma mina que rebentou, como suspeita Adriano Cerqueira, habitante da aldeia. Depois de se ter deslocado ao local do acidente e estudado a gigantesca cicatriz aberta na montanha, Carlos Bateiras, professor do Instituto de Geografia da Faculdade de Letras do Porto, não tem dúvidas de que se tratou de "um deslizamento, seguido de um fluxo de detritos". Por outras palavras: na sequência de precipitações intensas e prolongadas, a água acumulada entre a rocha sã, a chamada rocha-mãe, e o manto superficial (composto por terra e granito alterado) foi saturando os solos até ao limiar da coesão das partículas. Ao atingir essa saturação, a pressão da rocha compacta sobre a camada superficial acelerou a movimentação dos materiais, dando assim início ao deslizamento. Uma vez em movimento, esse deslizamento arrastou outros materiais ao longo da vertente, originando o tal fluxo de detritos. O "movimento em massa" que, no passado dia 7, abalou Frades ficou a dever-se a uma acumulação de factores favoráveis a este tipo de acidentes naturais. A encosta tem um declive muito acentuado, da ordem dos 34º, e uma disposição ligeiramente côncava, que fez do lugar onde se deu o deslizamento inicial o ponto de concentração da drenagem interior e superficial das águas. Acresce que, no mesmo sítio, o manto superficial é composto por alguma argila, e a argila, em contacto com a água, transforma-se numa espécie de lubrificante, facilitando assim o deslizamento dos materiais. Por último, choveu muito durante vários dias. Quando todos estes factores se conjugam, o resultado é um fenómeno de grande violência. No caso de Frades, o deslizamento inicial provocou uma enorme cratera, com 15 metros de largura e cinco de altura. O fluxo de detritos que se lhe seguiu escavou um canal de transporte de água, lama e pedras com uma extensão de cerca de 500 metros. O forte declive da encosta e a grande extensão do canal geraram um movimento de materiais violentíssimo, que só não foi mais trágico porque, já perto da aldeia, a massa de lama e pedras chocou com um esporão rochoso não alterado, sofrendo um ligeiro desvio. Se fosse sempre a direito, "apanhava uma área mais ampla da aldeia", diz Carlos Bateiras. Em Frades, não há memória de um acidente do género, mas este tipo de movimentos geológicos é bastante comum no Norte do país. Em 27 de Dezembro de 1981, um caso semelhante ocorreu em Arosa, na freguesia de Cavez (Cabeceiras de Basto), provocando a morte a 15 pessoas (ver texto ao lado). O acidente deu-se também numa encosta com um declive muito acentuado e culminou um período longo de precipitação. Neste caso, o que facilitou o desenvolvimento do fluxo foi a existência de uma soleira de granito bem conservado a pouca profundidade, que funcionou como um plano de deslizamento eficaz. A massa de água acumulada aproveitou a "soleira" da rocha-mãe e empurrou com grande velocidade o manto superficial, gerando um efeito de dominó pela encosta abaixo, e, em poucos segundos, uma bola imensa de água, lama, pedras e árvores entrou como um torpedo pelo piso inferior de um café situado uma centena de metros abaixo e onde se encontravam 30 pessoas. Este movimento não divergiu muito de um outro igualmente trágico ocorrido em 17 de Novembro de 1841, no lugar de S. João, na freguesia de Fiães (Melgaço). Tal como o de Cavez, o "terramoto" de S. João, como passou para a História, foi muito rápido e ficou a dever-se a uma saturação dos solos provocada por um longo período de precipitação. Mas as suas consequências foram muito maiores. De acordo com o relato feito na época pelo pároco da freguesia ao administrador do concelho, morreram 14 pessoas e desapareceram 15 casas "com todos os seus apparatos", seis pontes, cinco moinhos, 16 cabeças de gado grosso, 200 de gado miúdo, 10 porcos, 30 "carros de pão" (cereal), canastros de milhos e "terras de lavradio que nunca mais tornarão a dar pão". A aldeia nunca mais foi reconstruída.