Um tempo depois dos divórcios
Uma colecção de contos de Hanif Kureishi, em que metade é dedicada aos momentos de crise nas relações amorosas. Há um actor, um escritor, um produtor de cinema, um conferencista, mas nomes, vidas e ex-mulheres confundem-se.
A ficção narrativa de Hanif Kureishi está toda publicada em português, e (com excepção do primeiro livro) sempre pela Teorema: desde o romance de estreia de 1990, "O Buda dos Subúrbios", relato de uma juventude passada na periferia de Londres, até à recente colecção de contos "Meia-Noite Todo o Dia", a segunda depois de "Amor em Tempos Tristes". Pelo meio, outros dois romances, "O Álbum Negro" e "Intimidade" - que está a ser filmado por Patrice Chéreau.Foi, aliás, com o cinema que Kureishi ganhou notoriedade, ao escrever para Stephen Frears, em 1985, o argumento de "A Minha Bela Lavandaria", nomeado para o Óscar respectivo. Antes, tinha, com sucesso, experimentado o teatro: escreveu peças que foram encenadas logo de seguida, foi dramaturgo residente no Royal Court Theatre, fez uma adaptação da "Mãe Coragem", de Brecht, para a Royal Shakespeare Company (1984).Filho de mãe inglesa e pai paquistanês, Kureishi tem retratado com sensibilidade, ironia e espírito crítico o quotidiano de uma Londres multicultural, onde entram em conflito formas distintas de construção da identidade rácica, sexual e de classe. Trata-se de uma escrita que, partindo de experiências particulares, não deixa de ser política. Mesmo numa Inglaterra pós-Thatcher, mesmo se os seus últimos textos se concentram na vivência subjectiva de uma nova ordem sentimental.De facto, das dez pequenas histórias privadas de "Meia-Noite Todo o Dia", pelo menos metade foca obsessivamente momentos de crise nas relações amorosas. É um tempo depois dos divórcios: agora o que está em jogo são as novas ligações, há as memórias das antigas, há dúvidas, amargura, crueldade, coragem às vezes. Quase todos os protagonistas são homens de meia-idade, ligados à literatura ou às artes: elite, burguesa, intelectual. Robert, Nick, Morgan, Ian, Roger, Alan; um actor, um escritor, um produtor de cinema, um conferencista... Confundem-se os nomes, as vidas, as ex-mulheres."Teve um vislumbre da sua imagem no espelho do roupeiro e viu-se como uma personagem de um quadro de Lucien Freud, de gabardina fina acastanhada, rosto cinzento, em pé ao lado de uma planta agonizante, pesado e, para sua surpresa, com uma absurda expressão de esperança, ou de desejo de agradar, nos olhos." No seu melhor, a prosa de Kureishi é este espelho.Para falar de Kureishi, a crítica tem abusado de leituras autobiográficas que, como de costume, pouco adiantam: a biografia está sempre presente mas não serve de chave, é apenas mais uma história, mais um texto. Em dois dos contos ("Naquela altura" e "A chupar no dedo"), a relação entre a vida e a escrita é eticamente dramatizada. Fala-se do poder que o escritor tem de utilizar fragmentos da realidade que conhece, transfigurando-os: doa a quem doer, é ficção.Há no conjunto dois contos que destoam, alívio cómico. O primeiro chama-se "Quatro cadeiras azuis", compradas na Habitat e levadas de Metro para casa, numa sequência burlesca que põe em perigo o frágil início da vida em conjunto de um casal. O segundo, a fechar, é uma reescrita assumida da famosa narrativa de Gogol, "O Nariz", que numa acrobacia freudiana se transforma n' "O pénis" que Alfie, cabeleireiro, encontra no bolso do sobretudo. O dono de Long Dong é uma estrela de filmes pornográficos. Absurdo, escatológico e com uma pitada de mau-gosto, como convinha.Sobre o texto português de "Midnight All Day": além de um número excessivo de gralhas, há uma série de erros, alguns deles graves, numa tradução desequilibrada. Um exemplo da pág. 177: "ela tinha aberto portas e encontrado Roger e a mulher a abusarem um do outro por trás delas". Para lá da sintaxe arrevesada e antes de se começar a imaginar cenas escabrosas, é preciso saber que, aqui, "abusing one another" quer dizer "a insultarem-se mutuamente"...