Os passos do velho gozão
Só se pode amar o que se conhece. Para descrever Sintra da forma apaixonada como o fez, Eça de Queirós teve de percorrer as ruas estreitas da vila, olhar o verde da serra e escutar as águas a escorrer de uma qualquer nascente. Mas se voltasse hoje a Sintra, todos acreditam que o grande mestre das letras continuaria a ter "pano para mangas" para dar liberdade à sua refinada ironia.
No Verão de 1895, Eça de Queirós imitou várias das suas personagens romanescas e passou uma temporada em Sintra com a família. O local que acolheu o autor de "Os Maias" foi a Quinta dos Castanhaes. A propriedade do século passado, situada num vale pegado à vila, encontra-se actualmente repartida por várias quintas, mas mantém ainda preservadas algumas das características que encantaram o escritor e desagradaram à sua mulher.Um carta da filha do escritor, Maria, dá conta desta estadia: "... estivemos em Sintra, na Quinta dos Castanhaes, onde fiz conhecimento com figueiras e figos, que apanhava e comia por manhãs muito frescas, ao cantar da água corrente". Eça de Queirós, em carta a sua mulher, Emília de Castro, três anos após aquela deslocação, recorda-lhe: "Tu detestavas a Quinta dos Castanhaes, em Sintra, toda em socalcos, descidas, precipícios." O escritor, ao que se julga, terá ocupado uma das casas da propriedade, a Villa Fontes, hoje separada da quinta que mantém a designação original.A actual Quinta dos Castanhaes, num vale encravado entre a estrada para Monserrate e o antigo Paço Real, debruça-se sobre a zona rural e abre-se às vistas do centro histórico e da serra. Quando adquiriu a quinta sintrense, há 17 anos, Fernanda Conde Chan "desconhecia completamente a ligação ao Eça". A proprietária acha que D. Emília não gostou do sítio em comparação com a quinta da sua família em Tormes. Agora, depois da descoberta das referências epistolares no espólio do escritor, reconhece: "Dá um certo gozo porque é um autor de que sempre gostei."Não se sabe ao certo quando foi a primeira vez que Eça de Queirós se deslocou à vila que transportou como cenário para vários dos seus romances. João Rodil, autor de "Sintra na Obra de Eça de Queirós", admite que a primeira visita tenha ocorrido, senão antes, logo após o escritor se formar em Direito, pela Universidade de Coimbra, em 1866. "Só quem conhecia tão bem Sintra podia fazer aquelas descrições. Não só conhecia bem os sítios, como as pessoas que os frequentavam", afirma o responsável pelo roteiro queirosiano, acrescentando que, no caso de "O Primo Basílio", por exemplo, "há um conhecimento exacto da Quinta Mazziotti", em Colares.Nada mais natural, por isso, que Eça tenha visitado amiúde a região sintrense, em busca de matéria-prima para as suas obras, como para o folhetim "O Mistério da Estrada de Sintra", em parceria com Ramalho Ortigão. O espaço sintrense, segundo Rodil, "tem um papel fundamental na obra de Eça, porque o escritor, ao colocar as personagens, também se aproveita de Sintra para as caracterizar". A vila era então procurada como destino amoroso ou de veraneio pela burguesia lisboeta. Os principais hotéis - Vítor, Lawrence e Nunes - são procurados consoante os diversos intervenientes. É apenas por um súbito pudor que Carlos da Maia, na sua "perseguição" a Maria Eduarda, troca o Lawrence pelo Nunes. Mas Eusebiozinho, quando Carlos lhe pergunta se estava acompanhado pela prostituta Lola, faz-se escarlate e responde: "Credo! Estava no Vítor, muito sério!" Será no Nunes que Carlos e Cruges vêm a encontrar o viúvo e Palma Cavalão, acompanhados por duas "señoritas" espanholas.O trajecto entre o Lawrence e Seteais era uma espécie de "passeio público" de Sintra. Em Seteais, cujo palácio se encontrava à época degradado e ao abandono, os amantes "aqueciam" a rocha do Penedo da Saudade. Aí, a meio caminho para Monserrate, os visitantes podiam admirar o palácio da Pena, sonhado e mandado construir por D. Fernando II, o rei-artista a quem Sintra muito deve. Ou olhar os campos até ao mar, então ainda livres do avanço da especulação imobiliária e da devastação do betão, que avança passo ante passo.À época, as deslocações faziam-se principalmente por estrada, em diversos tipos de carruagens, de acordo com os vários estatutos sociais. O caminho-de-ferro só em 1887 chega a Sintra, ao bairro da Estefânia, então só com meia dúzia de casas. Eça ainda conhece, nos seus últimos anos de vida, os "automobiles", essas máquinas que produziam, segundo uma carta datada de 1897, um "barulho horrendo" e um "cheiro abominável a petróleo".Mas hoje, se voltasse a Sintra, o escritor certamente se faria transportar "num grande automóvel", de acordo com a sua posição social. Essa é a convicção de Maria Almira Medina, ex-directora do "Jornal de Sintra". Aos 80 anos, com uma vida repartida pelo ensino, a poesia e as artes plásticas, Almira Medina considera que "Eça ultrapassou o seu tempo". Da observação que o escritor fez da sociedade da sua época, nota que "a crítica de Eça não era facciosa e maldosa". Antes, "era uma crítica que buscava uma necessidade de melhoria da classe social burguesa". "Eça foi um dos maiores contestatários da sociedade portuguesa. A nossa maior obrigação é sermos contestatários. Contestar é exigir a quem pode dar e não dá."Para Almira Medina, "Eça era um esteta e havia de ficar muito aflito" com os atropelos à vila que conheceu. A poetisa não tem dúvidas de que, se o autor de "O Primo Basílio" visitasse hoje Sintra, "tinha aí tanto conselheiro Acácio" para caricaturar, por via de "tanta ofensa à natureza que ele estimou". Seja na ameaça aos valores naturais, seja por via da descaracterização arquitectónica. De que é exemplo a substituição (há duas décadas) do Hotel Nunes pelo modernaço Hotel Tivoli Sintra. Em suma, nos dias de hoje, conclui, "agora que somos todos burgueses, ele tinha pano para mangas"...Já o autor do roteiro queirosiano - do qual a Câmara de Sintra prepara uma reedição, revista e aumentada com fotografias e mapas - acha que "o que mais desgostaria Eça é o nítido desaparecimento do vinho de Colares". No tempo do escritor, a famosa casta ramisco sofria com as adulterações provocadas pela excessiva procura. Actualmente, os antigos vinhedos sucumbem perante a força do betão. Segundo João Rodil, outra ausência que desgostaria o escritor era "a falta de burros de quatro patas".Eram famosas as corridas dos simpáticos jericos organizadas para delícia da burguesia lisboeta do século passado. As burricadas partiam do hotel de Vítor Sasseti. O imóvel, no actual Largo Ferreira de Castro, encontra-se adaptado para habitação, dividido em apartamentos, um dos quais foi ocupado pelo historiador sintrense José Alfredo da Costa Azevedo. "Não sei se o Eça gostava de jogar ténis, mas acabaram com o único 'court' que existia em Sintra, no Parque da Liberdade", lamenta João Salvado Alves, proprietário do restaurante que funciona no lugar das antigas cavalariças do Hotel Vítor.O comerciante queixa-se do "desleixo em que está a vila" - um caixote do lixo em frente ao estabelecimento, a deitar por fora, espera há uma semana que o recolham -, e reclama contra a desertificação do centro histórico, "que qualquer dia está pior do que a Baixa de Lisboa". E ri-se quando repete a principal crítica que os clientes por vezes lhe deixam: "Então, pintaram a fachada do palácio e deixaram a parte de trás por pintar?" Um reparo que remete para a descrição feita em "Os Maias" das colossais chaminés gémeas, "disformes, resumindo tudo, como se essa residência fosse toda ela uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que cada dia come todo um reino...".A sombra de Eça de Queirós pode ser encontrada por várias esquinas de Sintra. Mas Fernanda Chan guarda uma castiça história do regresso do escritor à vila. Foi há uns anos, num leilão a que assistia a proprietária da Quinta dos Castanhaes: "Encontrei um busto do Eça em gesso, em que ele está com aquele ar característico dele. Então pensei: estás para aí a gozar, mas vais voltar para a quinta outra vez." Assim foi, até hoje.