A ascensão e queda de Manuela Arcanjo

Mais cedo do que tarde, a contra-reforma empreendida pela actual titular da pasta da Saúde começou a dar os seus resultados. Numa semana, a Presidente da ARS de Lisboa e Vale do Tejo apresentou a sua demissão em ruptura com a tutela, alegando incumprimento de promessas anteriormente assumidas pela ministra, e o Presidente da ARS do Norte é demitido, ao que tudo indica, por invocado excesso de zelo na defesa da atribuição preferencial aos militantes socialistas de lugares nos serviços que administra.Por razões aparentemente opostas, dois dos principais responsáveis pela aplicação da actual política de saúde transformaram-se na parte visível das contradições insanáveis que atravessam esta equipa ministerial. A Presidente da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, transitada do anterior gabinete, representava a última trincheira do SNS21, enquanto o Presidente da ARS do Norte materializou nestes meses o espírito dos adversários políticos da reforma do Serviço Nacional de Saúde. Esta amplitude de posições, tão característica deste governo, tem servido à equipa ministerial para tentar esconder os seus verdadeiros propósitos: refundar o SNS, imprimindo-lhe uma lógica liberalizadora, na linha do que vem reclamando Cavaco Silva e os grupos económicos ligados ao sector.Nomeada para o cargo à custa dos sectores que viam no quadro jurídico-legal do SNS21 uma ameaça aos seus projectos liberalizadores, a actual titular da pasta da Saúde tem procurado afirmar-se através dos sistemáticos ataques movidos ao anterior gabinete, consubstanciando nessas posições a sua oposição à política de saúde por ele encetada. Configurando uma aparente ausência de orientação política na matéria, a titular da pasta deixou à deriva um sector tão sensível, expondo deliberadamente recursos públicos no valor de muitos milhares de milhões de contos à voracidade dos grupos económicos. Mas a intenção manifesta de transferir para a gestão privada estes recursos e infra-estruturas, longe de poder contribuir para a melhoria dos serviços, iria sobretudo servir o ramo financeiro das empresas que nele estão interessadas. O caso do hospital Amadora/Sintra é o exemplo dos objectivos do mercado nesta matéria.A ascensão de Manuela Arcanjo e da sua equipa ao Ministério da Saúde pela mão do ministro Pina Moura teve como finalidade servir de ponte entre a política que vinha sendo prosseguida pelo cavaquismo e a mesma política agora sob a orientação de António Guterres. As indicações de que o futuro Estatuto Jurídico dos Hospitais irá privilegiar a gestão privada destas unidades de saúde e que a Lei de Bases da Saúde a ser apresentada à Assembleia centrará o principal da administração do sistema na competição gerida, são sinais demonstrativos da vontade política que há em imprimir ao sector público da saúde um rumo claramente neoliberal.Contudo, são visíveis os sinais de incapacidade desta equipa para dar conta do recado, nomeadamente na parte em que lhe era exigido que, pelo menos, mantivesse o sistema numa certa velocidade cruzeiro. Mas nem isso. Fica, aliás, como exemplo entre muitos outros, a conhecida tirada da titular da pasta no último Congresso dos Clínicos Gerais, na Figueira da Foz: os Sistemas Locais de Saúde não são implementados porque os utentes não sabem o que isso é (cito de cor). Imagine-se este processo de escolha e decisão a vingar em todas as áreas da governação, ou na escolha da orientação política a imprimir aos assuntos de Estado. Nunca como ao longo destes meses o Serviço Nacional de Saúde foi tão deixado a si próprio, sem mecanismo de contrôle, regulação ou apoio. Pode-se dizer, aliás, que este gabinete passou de emissor a omissor de orientações e decisões políticas, sabendo que essa é a via mais curta e eficaz para desorganizar os serviços públicos de saúde e transformá-los em presa fácil de todos os ataques e demagogias.No plano do desempenho, ninguém consegue dar um valor preciso sobre, por exemplo, o estado das listas de espera. O último valor conhecido projectava para 2005 a resolução das actuais cirurgias em espera, desconhecendo-se, contudo, quantos novos casos entraram no programa, no corrente ano. O desempenho económico-financeiro foi o que se viu, com um déficit orçamental na casa dos 300 milhões de contos. A política de medicamento não arranca. Os cuidados continuados estagnaram. A coordenação horizontal do sistema fica para qualquer dia. A gestão intermédia dos hospitais é boa nos hospitais em que se aplicar o novo Estatuto Jurídico. Os centros de saúde de 3ª geração continuam a ser uma miragem. Sobre o novo sistema remuneratório, qualquer dia falamos. A tudo isto o governo, o primeiro-ministro e o Partido Socialista têm dito nada, dando cobertura a este mais que lamentável estado de coisas.Esta situação configura um cenário terminal para esta equipa ministerial. Podem ainda passar algumas semanas, mas os dias do fim já estão à vista. A política neoliberal ensaiada por este gabinete, apesar das muitas e variadas retaguardas ministeriais, dos muitos e diversificados apoios políticos e das muitas e incompreensíveis cumplicidades, não conseguiu gerir e ultrapassar as contradições presentes no seu projecto. Designadamente a incontornável herança do SNS21. Esta fronteira jurídico-legal é e será no futuro uma barreira jurídica às arremetidas do mercado neste sector. As forças com que se tem contado para travar este combate ainda não são suficientes, mas são boas. Um movimento sindical decidido a resistir e a combater, uma Plataforma das Organizações Sindicais da Saúde disposta a defender os serviços públicos de saúde e a exigir o seu bom funcionamento e uma frente política dividida entre esquerda e direita, com um PS mais inclinado para a defesa dos interesses dos Mellos do que para a defesa dos interesses dos cidadãos. A criação de uma frente social pode, por isso, constituir uma importante contribuição para o reforço do campo dos defensores do Serviço Nacional de Saúde e da sua reforma democrática. Esta é, penso, uma agenda urgente. A agenda do próximo milénio.*Membro da Direcção do Sindicato dos Médicos da Zona Sul

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