"Simpáticos, não somos..."
Entrevista com Helder Macedo, que acaba de publicar o seu segundo romance, "Vícios e Virtudes". De D. Joana, mãe de Dom Sebastião a uma moderna Joana, as voltas da identidade nacional.
Helder Macedo, 65 anos, professor catedrático no King's College, em Londres, ensaísta, poeta e escritor de ficção ("Partes de África" e "Pedro e Paula"), lançou um novo romance :"Vícios e Virtudes"(Presença). É "um romance policial sem corpo e sem cadáver", um "anti-romance histórico" em que se questiona a identidade nacional, logo se fala de Portugal, e se lembra a história do Duque de Gândia que se tornou S. Francisco de Borja, de Isabel de Portugal e de Joana, a louca. Esteve em Lisboa para lançar o seu livro, e falou ao "Mil Folhas", no Hotel Tivoli.Afirmou que "todos os nossos livros são uma continuação de outros". Ainda os sente assim?São e não são. Porque se se escreve sempre uma continuação ou se se escreve sempre o mesmo livro, não vale a pena. Mas podem ser continuação até por contraste. No "Pedro e Paula", a personagem feminina é extremamente solar, extremamente activa, muito vital. Esta Joana de "Vícios e Virtudes" é o oposto: um ser crepuscular, um ser das zonas intermédias, um ser ou de madrugada ou de crepúsculo, é uma mutante. Como tal é, se alguma coisa, o oposto. "Vícios e Virtudes" é então um romance de opostos?É de algum modo um livro de opostos implícitos, não só em termos dessa personagem feminina. Este é também um anti-romance histórico: pega em falsas coordenadas de conotações históricas, que são situadas como uma ficção, como uma mentira, até como uma provocação na Lisboa de agora. Como lhe surgiu a ideia?O que geralmente me acontece é que penso numa pessoa, numa personagem. Os escritores partem de várias coisas. Uns partem de ideias, ou de situações; eu parto sempre de gente. Interessam-me acima de tudo pessoas. Pessoas e personagens femininas.Começou pela Joana?Sim, imaginei esta Joana e a partir daí foi todo o trabalho de a conhecer um pouco, até fisicamente. É uma actividade de louco estar a imaginar gente que não se conhece, a querer decidir a cor dos olhos, saber que cheiro têm. De facto, os romancistas enlouquecem nesse processo. Por outro lado, há a disciplina da escrita, logo salvam-se do manicómio por causa disso [risos]. Imaginar que tipo de personalidade teria... a jogadora, a mulher que toma riscos de toda a ordem e que se constrói. Aí entrou o elemento da criação de uma personagem que de algum modo usurpa o papel tradicional do autor. De forma a não haver neste livro um só autor...De algum modo existem três autores implícitos. Dois que são formalmente escritores. Um deles é o eu narrativo que vai com o meu nome, embora não coincida necessariamente em termos factuais com coisas que eu tenha feito ou não. O outro é uma versão de algum modo satírica de muito escritor, de colegas que andam, enfim, nestas vidas. E o terceiro autor implícito, uma personagem mais sombria, que não se sabe muito bem quem seja ou se existe. Seria também uma espécie de mentor, inventor, construtor desta Joana. E a determinada altura acontece a inversão de papéis. Estes três inventores masculinos sentem que estão a ser muito mais usados por essa personagem Joana do que a construí-la ou até a usá-la. Ela autonomiza-se, passa a ter voz própria e até a impor regras. Julgo que para o fim do livro há mesmo uma total inversão. Aí é de facto a demanda dessa personagem que escapa. O que levanta, julgo eu, um problema curioso sobre a própria natureza da escrita, da ficção. A partir de que momento é que as personagens adquirem autonomia? A partir de que momento é que o escritor deixa de ter escolha e passa a ser usado de algum modo fantasmaticamente por aquilo que julga ser a sua criação? Neste livro aborda o problema da identidade nacional...Adoptei um tom um bocado extremo - entre jocoso e polémico. Mas acho que tudo quanto seja uma definição prévia, rígida ou absoluta de identidade é uma forma de morte. Ou seja, é negar a possibilidade de mudança, é negar a existência das coisas. Se se diz: 'Maria é assim, Maria já não pode ser assado, porque tem de passar a ser assim, para ser Maria', o nome torna-se a coisa, a coisa torna-se o nome. Em termos da percepção histórica que os portugueses têm de si próprios, há uma profunda fabricação.Isso não acontece também com os outros povos?Se calhar existe em todas as nações, mas eu sou português, interessa-me aquilo que é a portugalidade. Brandos costumes, contemplativos, saudade é um sentimento único, só português - ora nada disso é verdade. Tudo pode estar lá, mas não é assim também. Portugal é uma nação contemplativa mas construiu impérios, e os impérios não se constroem com contemplação. Há 200 anos queimavam-se em Lisboa pessoas vivas. O 25 de Abril, sim senhor, a revolução dos cravos, foi na sequência dos napalmes, da PIDE e das torturas. O tráfico de escravos - que também não era simpático -, Portugal foi dos últimos países do mundo a aboli-lo. E a base da riqueza que vinha do Brasil vinha disso. Metade dos escravos morriam em transporte, para não esquecer os que tinham mãos cortadas para mostrar que é necessário trabalhar porque senão não vale a pena ter mãos. Não somos melhores nem piores do que os outros, mas simpáticos não somos. Eu acho que o recusar aquilo que se é é uma forma de alienação. E se se recusa, não é possível um assumir de qualquer espécie de identidade. Toda e qualquer identidade vai mudando. E transpôs as suas ideias para a ficção.Este livro não é um tratado sobre a identidade nacional. O que eu fiz foi pegar na visão fantasmática da história associada a um sebastianismo que existe e transpô-la para a ficção. Temos uma personagem, geradora de alguém que passou a ser simbólico disso - o Dom Sebastião -, mas que não entra na história. É eliminado. No livro, em termos da história contemporânea, não se sabe se esta Joana (que corresponde e não corresponde à Joana de Áustria histórica) teve um filho ou não teve um filho. Se o gajo morreu ou se não morreu. Se alguém o matou ou se alguém não o matou. Se é tudo uma grande fantasia. Não é necessário para a história. Ao mesmo tempo, a personagem Joana é aquela que não consegue ser agarrada e que tem tantas versões quantos os interlocutores sobre o que seja a sua biografia, até chegar ao ponto de dizer evidentes aldrabices. Chega-se ao fim do livro e ela escapa. Não se sabe onde ela está.