Ele, no inferno
Dois anos após o suspiro denso e sufocante de "Angels With Dirty Faces", Tricky está de regresso com um "Mission Accomplished", EP de antecipação ao novo álbum de originais a sair em 2001. Mas o que o Y descobriu em conversa com o autor de "Maxinquaye" foi um artista a caminho da reconciliação consigo próprio, afastada que está a doença que o afectou nos últimos anos e consumada que está a saída da editora Island. Do hábito de perder pessoas ao descrédito na morte do rock, da vontade de se sentir só em estúdio às recordações de uma infância caótica, de Deus e da religião à inauguração de uma nova música que Tricky promete para breve, a entrevista com um velho demónio sem vontade de ser anjo.
Constituído por quatro temas inéditos, o EP "Mission Accomplished" é o primeiro esforço discográfico de Tricky depois da recente saída do músico da editora Island. É um disco que, tal como o anterior "Angel With Dirty Faces", volta a convocar para a produção membros da comunidade hip-hop nova-iorquina - no caso, Maddog -, mas que ao contrário deste faz do rock a sua linguagem dominante. É o que nos espera no novo longa-duração de Tricky, com saída prevista para Abril do próximo ano. P."Mission Accomplished" tem por tema geral uma crítica feroz à indústria fonográfica. Em que medida a saída da Island determinou a sua carreira recente?R. Vejo este EP, e o novo álbum que aí vem, como um balanço daquilo que foram os dois últimos anos na minha vida. Em 1998 comecei a sentir-me mal, ao ponto de me ter tornado absolutamente insuportável. As pessoas com quem estava habituado a trabalhar disseram-me que já não conseguiam trabalhar mais comigo, tinha oscilações de comportamento súbitas e sabia que havia algo em mim que não estava bem. Comecei a praticar "tai chi" e consultei uma série de médicos, até que um nutricionista me diagnosticou candidíase. Passei o último ano em dieta rigorosa. Não fiz nada, rigorosamente nada. Agora estou a divertir-me de novo. P. Onde cabem então as insinuações de "fuck Polygram" num tema como "Divine comedy"?R. A ideia para essa faixa partiu de uma história em que um alto quadro da Polygram afirmou que se a editora excluísse do seu catálogo todo e qualquer músico com cadastro não haveriam músicos negros na indústria. São coisas deste tipo que me enojam, o facto de as multinacionais se parecerem cada vez mais com supermercados e de sentirem que podem fazer o que querem com aqueles que, tal como eu, não são bem bem vindos. Têm-me perguntado se me sinto incomodado com a quebra das minhas vendas nos últimos anos, sobretudo com "Angels With Dirty Faces". A única coisa que posso dizer é que foi isto que escolhi fazer e ninguém tem nada a ver com isso. Também não gosto desse álbum, às vezes sinto que não gosto sequer de nenhum dos meus álbuns, mas quem é que afinal se quer tornar numa estrela pop?No meu caso, a música que faço não é pop e eu não tenho uma data de miúdas catitas e seminuas a nadar numa piscina para pôr nos vídeos. E também não uso armas nem tenho dentes postiços medonhos para mostrar às pessoas como sou mau. Por isso sou segregado, mas pouco me importa. Estou habituado a perder pessoas, tal como os Kennedy. P."Mission Accomplished" é o álbum em que mais se aproxima das estruturas-tipo do rock. O facto de se estar a afastar da música de raiz electrónica deve-se a algum de tipo de reacção quanto à sua configuração actual? R. Toda a gente diz que o rock morreu às mãos da música electrónica, mas isso são tretas. Este disco é uma forma de dizer "f.." a isso, a toda a arrogância com que os tecnocratas deste mundo nos tentam impingir que a nossa salvação será tecnológica. A verdade é que a maior parte da música de dança que se faz agora é das piores coisas que ouvi nos últimos anos. Dizem que é o despontar de uma nova era, mas onde está a revolução quando se ouve uma rapariga com a voz mais dócil do mundo a cantar por cima de um "sample" roubado? A revolução só acontecerá quando os músicos voltarem a pegar em guitarras, como o Bob Marley ou o Kurt Cobain, e começarem a escrever canções. Para mim, a tecnologia está a matar em música em muitos aspectos. P. A orientação sonora de "Mission Accomplished" é a que nos espera no seu novo longa-duração a sair em Abril? R. Em parte sim. Para mim é nova música, é toda uma nova atitude em relação à música. É difícil defini-la, estou demasiadamente envolvido para poder dar uma explicação mais clara. Posso garantir que não é comercial, porque é assim que faço as coisas. E tem todos os instrumentos possíveis e imaginários, muitas guitarras e teclados. O "Maxinquaye" e o "Pre-Millenium Tension" não são para mim música nova. Até agora, a minha música tem sido aquilo que eu vejo, mas esta é uma música que eu não vejo e que não conheço. Nunca ouvi nada assim em toda a minha vida. P. Ainda é trip-hop?R. Nunca foi trip-hop. Detesto a expressão trip-hop, não passa de uma camuflagem de que as pessoas se lembraram para tornar o hip-hop seguro. E as pessoas não querem que os seus filhos ouçam hip-hop porque o hip-hop assusta. O trip-hop tornou-se uma expressão tão cómoda que vende discos só por si. A minha música é a minha música, se quiserem chamar-lhe alguma coisa chamem-lhe Tricky-hop. Ainda hoje estou para saber quem inventou essa expressão. P. Os seus métodos de produção mudaram muito nos últimos anos?R. Nem por isso. A música continua a ser um jogo e eu a criança que brinca com as peças. Fecho-me no estúdio a sós com o meu sequenciador de sempre, o QY-20, e a vida pára ali. Não deixo que ninguém me incomode, não atendo o telefone, não falo com ninguém. É no estúdio que mais me aproximo de mim. Sou um tipo muito solitário. P. Em muitas das suas canções recorre a um imaginário religioso. Considera-se uma pessoa religiosa?R. É verdade o que diz, mas sinceramente não sei porque o faço. Acredito na energia e nesse tipo de coisas que por vezes tomam conta de nós, mas não sei se Deus existe. É uma questão que nunca me inquietou. Não sou religioso e na minha família não me lembro de alguém alguma vez ter dito que era religioso, mesmo os meus antepassados jamaicanos. A verdade é que cresci em Inglaterra, onde existe todo um sistema regulamentado de educação moral nas escolas. Se calhar é por isso que uso esse tipo de imagens. P. Como foi a sua infância?R. Caótica. A minha mãe suicidou-se quando eu tinha quatro anos e acabei por ficar por conta da minha avó. Éramos pobres e não tínhamos muito onde nos agarrar, que é o que se passa com toda a comunidade de sangue caribenho numa comunidade pequena como Bristol. Foram tempos terríveis que me marcaram para sempre. Por exemplo, tenho um terrível problema de asma que nasceu por ter sido subalimentado durante muito tempo. Entretanto, entrei para a escola e as únicas coisas que me interessavam eram as namoradas, a música e a erva. Fumava-a de noite para estar dentro da música e fumava-a de dia para me sentir longe da vida. Dava-me tudo o que precisava. Às vezes sinto que não mudei assim tanto desde então. P. Quando é que regressa a Portugal?R. Quando o álbum estiver cá fora devemos dar início a uma digressão mundial e faço questão que ela passe por Portugal. Já tenho dito isto a muita gente, e acredite que a primeira vez que actuámos em Lisboa foi talvez o melhor momento por que passei em toda a minha vida. Não conheço ninguém que tenha lá estado comigo e que não diga o mesmo. Foi incrível, absolutamente incrível.