Ficcionando contos
O número dois da revista "Ficções" vem relembrar-nos a importância do conto, narrativa breve e fantástica por excelência, no imaginário contemporâneo.
Esta revista, dirigida por Luísa Costa Gomes, pretende retomar a herança um pouco esquecida da ficção neste género e afirmá-la na emergência de uma publicação que congrega o lado mais tradicional do conto com linguagens inovadoras do contar. Surgem assim, em simultâneo no mesmo número, numa estrutura que sustenta o próprio projecto editorial, autores estrangeiros com inscrição no património ficcional da humanidade e autores portugueses que incluem dois nomes inéditos. Esta relação estrutural oferece-nos uma abrangência coerente que permite a errância pelos mais variados universos ficcionais, o reencontro com uma literatura mais clássica, no sentido em que lidamos com acção, personagens bem construídas e uma "moral da história", e ainda o questionar da própria arte de contar e das suas categorias.A galeria de autores deste número compõe-se com nomes conhecidos como Diderot, Horace Walpole, Franz Kafka, Vladímir Nabokov, Maria Velho da Costa, Teresa Veiga, e as estreantes Isabel Boavida e Cláudia Clemente. O texto inédito de Diderot "Isto não é um conto" manifesta uma linguagem revestida de todo o polimento e limpidez que caracteriza o génio espirituoso deste escritor. O narrador apoia-se na figura do leitor que está presente no texto e que questiona e conhece as próprias personagens, ao que parece, verídicas. Os exemplos que descreve - as histórias amorosas de grande injustiça pelo carácter desequilibrado de cada par: o caso da terrível Senhora Reymer e do honesto Tanié e o caso da dedicada Menina de La Chaux e do autoritário Gradeil - servem-lhe para ilustrar a sua tese de que "o homem e a mulher são animais muito malfazejos", numa avaliação profunda sobre a conduta humana. De Horace Walpole, o escritor inglês de novelas góticas a quem pertencem as palavras "o mundo é uma comédia para os que pensam e uma tragédia para os que sentem", apresenta-se nesta publicação com o texto "Dois contos hieroglíficos", que data de 1785. Estes contos revelam uma narrativa imaginativa e original que caracteriza o "nonsense" inglês, reivindicando para o conto o carácter, às vezes depreciado, do fantástico e do humorístico. Assim, tanto na primeira história "Um novo divertimento da noite das Arábias", como na segunda, "O rei e as suas três filhas", presenciamos uma paródia à monarquia, aos motivos dos contos tradicionais (a heroína do conto tem de ser princesa ou pastora, o príncipe perfeito que nunca existiu), ao império romano, ao clero, etc., num estilo próximo do da escrita automática desenvolvida pelos surrealistas que se descobre aqui pela forte componente onírica na criação de imagens. "O Artista da Fome", de Kafka, conta o declínio da arte de jejuar, em que a estranha admiração pelo definhar do artista é afinal desvalorizada, rebaixada às celas dos animais. Se inicialmente interpretamos o jejuar como beleza e pureza de uma provação, o conto mostra antes o processo de transfiguração para o vazio, o nada, o secar do homem como a palha, e a confissão do artista antes de morrer desmistifica a sua condição, a revolta que sente renega a própria honra do jejum, que é desmascarada pelo absurdo. N'"O regresso de Tchorb" de Vladímir Nabokov assistimos ao percurso de Tchorb através da longa despedida da sua mulher, morta de forma insólita, que finda após o refazer de todos os momentos e experiências conjugais na memória do homem solitário. O autor trabalha o desespero desta personagem que quer guardar para si todo o sofrimento, ficando despojado do próprio mundo ("o mundo de Tchorb deixara de se parecer com um mundo, retirando-se instantaneamente") e fá-lo com as suas marcas estilísticas mais notórias: a atenção aos pormenores sensuais que confere à descrição, a metáfora subtil, a ginástica da língua. Este texto pertence a uma fase da escrita de Nabokov (1925, em Berlim) em que temas como a perda, a morte e o fluxo de tempo são frequentemente recorrentes, e é um exemplo louvável da beleza com que tratou tais temas. Dos contos acima referidos, devem referir-se as excelentes traduções de Pedro Tamen, Luísa Costa Gomes e José Maria Vieira Mendes.Os contos portugueses retratam também universos muito peculiares. Maria Velho da Costa escreve sobre as memórias de infância ("assim coalhadas em luz, encapsuladas como aquelas esferas de vidro que ao virar-se cintilam de neve ou de partículas doiradas sobre uma paisagem em miniatura") pela voz de uma narradora que conta a sua história. A complexa construção desta narrativa, em que as vozes se intercalam umas com as outras, é toda ela vivacidade e tensão. A cumplicidade de Anica com seu primo Tino e a figura da avó Assunta aparecem através das lembranças mais sensitivas, os pormenores que marcam a infância, as imagens nítidas tornadas miragens. "Confidência barreirense" é o nome do conto de Teresa Veiga que tem uma ligação directa com a experiência vivida pela autora. O cunho autobiográfico confere maior destreza à empolgante narração do destino da família Martinó. Isabel Boavida e Cláudia Clemente constroem três histórias com todas as características genuínas do conto: um acontecimento enigmático interfere na ordem natural das coisas e a narração ganha uma dimensão criativa que lida com a estranheza e a originalidade.