Um quarto de século de "Juan, o Breve"
Começou há 25 anos o reinado de Juan Carlos. Chamaram-lhe colher, porque não picava nem cortava. Mas quando foi nomeado sucessor de Franco, o Príncipe de Espanha procurou outra legitimidade, a popular, que lhe foi concedida por 94 por cento dos espanhóis. Apesar dos apelos abstencionistas duma oposição que nele não acreditava.
Em 22 de Novembro de 1975, num dia tão frio como o de hoje, a Espanha iniciava um vertiginoso acerto de passo com a história: o que se denominou transição democrática. Apenas 48 horas após o ditador Francisco Franco morrer na cama e de, no anúncio televisivo da sua morte, em três gravações sucessivas, o então primeiro-ministro Arias Navarro ter conseguido chorar três vezes consecutivas. Há 25 anos começou o reinado de Juan Carlos de Borbón, o monarca a quem a esquerda espanhola apelidou de "Juan, o breve". "Pensávamos que Juan Carlos era a expressão dos ultras do regime, pois fora nomeado por Franco", recordou, há dias, Santiago Carrillo, então secretário-geral do Partido Comunista de Espanha (PCE). Carrillo manteve a desconfiança, embora um ano antes da morte do "caudillo", quando a Revolução dos Cravos contagiava de optimismo a Península Ibérica, o então Príncipe de Espanha enviara emissários para o diálogo. Primeiro, o advogado José Maria Armeno que, em Paris, contactou o que havia de oposição à ditadura franquista, de "rojos" a socialistas desorganizados, passando por democratas-cristãos dilacerados pelo "nacional catolicismo". Depois, através do empresário Manuel Prado y Colón de Carvajal, cujos contactos em Bucareste com Nicolae Ceausescu tinham como objectivo que o líder do PCE, a principal força da oposição, concedesse uma margem de confiança ao Borbón."Tínhamos [a Junta Democrática, que congregava a esquerda] a consciência de que era necessário alguém que, de dentro, abrisse as portas", admitiu Carrillo. "A grande surpresa foi quando percebemos que o homem que procurávamos estava no local exacto e que era, nem mais nem menos, o próprio Juan Carlos." A desconfiança do líder comunista era partilhada pela "oposição de rua": os que estavam contra o regime, mesmo que não organizados. "A morte de Franco foi uma libertação, não havia medo mas uma certa apreensão sobre o papel de Juan Carlos", diz ao PÚBLICO Anunciata Bermond, 60 anos, jornalista do "El País" e, há 25 anos, redactora da revista "Triunfo": "Em 20 de Novembro juntámo-nos num restaurante para uma almoçarada e, com 'cava' fizemos um brinde tão simbólico como revelador." Mas havia a incerteza do papel do Borbón.Juan Carlos tinha então 37 anos. Desde que, com dez, chegara a Espanha vindo do Estoril, em Portugal, para estudar uma carreira - a de Rei - que não lhe era reconhecida pelo ditador, suscitou mais desconfiança que apreço. Ainda que a sua condição de menino longe da família fosse confrangedora: a Espanha terá sido para ele, nesses momentos de criança, um gigantesco "colégio interno". Nos anos 60, os espanhóis utilizavam o humor para o classificar: "É como um colher, não pica nem corta". O menino cumpre um plano de estudos acordado entre seu pai e Franco: colégios e academias militares sucedem-se num périplo austero, que se adivinha sem afecto. Casa-se com Sofia, em 1962, em Atenas. É uma boda peculiar: ele é Juan Carlos de Borbón, aos 24 anos sem título; ela é filha dos reis Paulo I e Frederica, e conhecerá, como ele, os rigores da "realpolitik". A linhagem familiar dele não era reconhecida, e a dela será posta em causa, com a deposição de seu irmão Constatino, vítima do seu compromisso com a ditadura dos coronéis gergos, derrubada em 1974.Seis anos depois do enlace, Biddle Duke, então embaixador dos Estados Unidos em Madrid, escreve um relatório sobre um encontro com Juan Carlos. As linhas mais interessantes são as pessoais: "Parece haver uma certa ingenuidade cega em algumas das opiniões políticas que manifestou." Um ano mais tarde, o sucessor de Duke, Robert Hill, confirma a mesma tecla mas introduz um novo tema. Então, já Francisco Franco, perante as Cortes, tinha proposto Juan Carlos como seu sucessor e, em 23 de Julho de 1969, este é nomeado Príncipe de Espanha. "O Príncipe sabe que a monarquia não é "popular" e que a sua tarefa é construir uma monarquia moderna e viável com o apoio popular", escreve Hill. Em linguagem diplomática anunciava-se a mudança."Queria ser o Rei de todos os espanhóis o que não era fácil naquele momento", reconheceu, há dias, em entrevista, o monarca. Ou seja: não lhe basta a indigitação franquista e procura outra legitimidade. O tempo passa a ser o seu principal adversário. Só em finais de Outubro de 1975, o Príncipe, pela doença que levará à morte o ditador, assume as funções de Chefe de Estado. A oposição tem reservas, embora Juan Carlos fique à margem de uma das últimas decisões de Franco: a sentença de morte, em 26 de Setembro de 1975, para militantes da Frente Revolucionária e Anti-Fascista (FRAP) e da ETA. "Sabia que uma monarquia só o poderia ser sendo democrática", admitiu Juan Carlos, no domingo passado, perante as câmaras da TVE. A revelação acontece após a morte do ditador. O já proclamado Rei pelas Cortes, em 22 de Novembro de 1975, não fala da legitimidade do movimento de 18 de Julho [a rebelião militar que levou à Guerra Civil de 1936-39 e à consagração de Franco] e, sobretudo, enfatiza o mandato legítimo do espanhóis. "O discurso surpreendeu quando disse que queria ser o Rei de todos os espanhóis, o que agora parece óbvio na altura não o era", recorda a jornalista Bermond. Mas o chefe do governo é o mesmo Arias Navarro, que por três vezes chorou o anúncio da morte do ditador até encontrar a definitiva pose televisiva.Navarro dura pouco. É substituído em Julho de 1976 por Adolfo Suarez, o jovem secretário-geral do Movimiento, cujo bom perfil e casaco branco recordavam um "camarero" de boas maneiras de um bom hotel. "Ficámos desconcertados", admite Anunciata Bermond. "Pensei que Suárez podia ser bom porque servira no antigo regime e tinha vontade de criar uma coisa nova", sustentou o monarca na sua recente entrevista. Em 1976, a Espanha digeria o desenvolvimento económico iniciado duas décadas antes sob os governos dos tecnocratas da Opus Dei. Proliferam as horas extra, o pluri-emprego, e os espanhóis motorizam-se: nas províncias de Madrid e Barcelona é ultrapassada a fasquia do "coche" um milhão. A ruptura já levara a outros hábitos: o "Relatório Hite", desafiando a moralidade oficial, era o livro mais vendido no El Corte Inglês. Mas, na rua, há apreensão. Até que a história se acelera. "Torcuato [Fernandez Miranda, presidente das Cortes] tranquilizou-me, dizendo que a lei sempre se muda com outra lei", revelou, agora, o Rei. A mudança esperada começa a ser transição. São legalizados os sindicatos democráticos, as Cortes franquistas fazem um hara-kiri, apoiam a reforma política que é submetida a referendo. A oposição apela á abstenção, mas em Dezembro de 1976, mais de 94 por cento dos espanhóis apoiam a iniciativa. "A sabedoria popular venceu. Os que nas urnas apoiaram a reforma de Suárez votaram para conseguir alguma coisa, a esquerda enganou-se, pura e simplesmente", constata Anunciata Bermond. E Juan Carlos encontrou a legitimação que procurava. Em 1977, com a legalização dos partidos políticos e a dissolução do Movimiento, a Espanha está preparada para eleições, das quais Adolfo Suárez sai vencedor. Um ano depois, com o apoio de 88 por cento dos espanhóis, é aprovada a Constituição que consagra uma monarquia constitucional e que fez dos espanhóis uns híbridos "monárquicos republicanos".