História de uma dinastia
Uma "misteriosa" carta de condução, com o número 26, foi o ponto de partida para a construção de um pequeno império. O acaso fez que Arthur Eduardo Capristano se tornasse motorista, permitindo-lhe arrancar para um negócio vertiginoso, com epicentro nas Caldas da Rainha. Mas esta é, também, a história de uma estação rodoviária que foi muito mais do que isso. Até que um dia, de repente, a família decidiu vender tudo.
O facto de Arthur Eduardo Capristano ter sido uma das primeiras pessoas com carta de condução em Portugal continua a ser, para os seus netos, bisnetos e nora, um mistério. De fonte segura sabe-se que exercia a profissão de mecânico, numa altura em que os automóveis eram coisa rara, e conta a lenda que foi "chauffeur" do rei D. Carlos, tendo-o acompanhado em viagens pela Europa. Registos, só mesmo o do nascimento, em 3 de Dezembro de 1879, na freguesia "alfacinha" de Alcântara, e o da famosa carta de condução, cuja renovação é feita já sob os auspícios da república, em 1911. Nela se lê que Arthur Eduardo Capristano é titular da licença nº 26, que o habilita a "conduzir automóveis de systema explosão gasolina até oitenta cavallos de força".Na fotografia, Arthur tem 32 anos, é ainda solteiro e reside na Rua de Santo António à Estrela. Conta-se que tivera alguns "casos" e que já vivera com duas mulheres antes de se perder de amores por uma jovem da província que conheceu num lugar de hortaliça. Isaura da Conceição Matias corresponde na paixão, mas a família opõe-se e manda-a regressar à terra, o Peral (Cadaval). Arthur Capristano, porém, não é homem para desistir. Órfão de pai aos 18 anos, foi ele quem criou os dois irmãos, e o futuro haveria de provar que era um lutador persistente. Volta costas à cidade, instala-se na aldeia e, apesar de o romance ser controverso, em 1925, já quarentão, casa com Isaura e ambos passam a explorar uma taberna. "Sempre que podia, no entanto, mostrava com muito orgulho a carta de condução aos clientes", conta Aleixo Gomes Batalha, que com ele conviveu durante os 20 anos em que foi seu empregado e que relata o acaso que levou Arthur Capristano à riqueza."Havia no Bombarral um comerciante de vinhos muito rico, Ramiro Magalhães, que tinha automóvel e motorista. Os seus negócios eram tratados em Lisboa, no Hotel Avenida Palace, aonde se deslocava três vezes por semana. Um dia, o motorista adoece, o que o deixa muito aborrecido, pois no dia seguinte tem uma reunião muito importante. No escritório, um empregado diz-lhe que na terra dele, o Peral, havia um homem, dono de uma taberna, que tinha carta de condução." E é assim que, logo no dia seguinte, Arthur Capristano passa a acompanhar Ramiro Magalhães nas suas viagens à capital. O empresário simpatiza com ele e ajuda-o a tomar de trespasse uma taberna no Bombarral. A família muda-se então para a terra dos vinhos. Já são quatro, pois entretanto tinham nascido dois rapazes, José (o mais velho) e Artur, que mais tarde viriam dar continuidade a um negócio que ainda ia dar os primeiros passos. Da taberna, os Capristanos passam para uma pensão, tomada também de trespasse, à porta da qual Arthur vê passar diariamente uma "charrette" puxada por dois cavalos, que faz o transporte do correio entre a estação de caminhos-de-ferro do Bombarral e o Cadaval. De comboio chegavam, na época, cartas, encomendas e passageiros, que, sem outra alternativa, viajavam também na carroça para o centro da vila e para o Cadaval.Arthur vê nisto um potencial mercado e propõe-se ser ele a assegurar o serviço, mas com um carro, um velho Fiat, que transportava carga e passageiros, aproximando o Cadaval do Bombarral. O passo seguinte foi o transporte de mercadorias entre a estação ferroviária de São Mamede e Peniche, agora já com uma camioneta, que comprou em segunda mão, e um motorista. "Como o senhor Capristano era muito imaginativo", conta Aleixo Batalha, "arranjou uma armação de ferro, um oleado e bancos para instalar na camioneta de carga e poder transportar passageiros, aos domingos, do Bombarral para a praia da Consolação." Coroada de êxito esta experiência, o empresário abalança-se, em 1933, na compra da primeira camioneta de passageiros, inaugurando as carreiras Bombarral-Lourinhã e Bombarral-Torres Vedras. A expansão do negócio exige mais dinheiro, impondo a entrada de um sócio capitalista: Joaquim Ferreira dos Santos. A nova empresa, a Capristano & Ferreira, Lda. faz sucesso, apesar dos sócios desiguais: um "self-made man" e um empresário que tinha acumulado capital no comércio dos vinhos. Multiplicam-se as carreiras. Do Bombarral para Lisboa pode-se ir pelo Cercal e por Vila Franca de Xira ou por Torres Vedras e pela Malveira. De Lisboa para Leiria, é possível escolher entre ir por Alcobaça ou pela Nazaré e Marinha Grande. A nova firma adquire ainda a empresa Caldense, passando a deter as rotas Caldas-Peniche e Caldas-Santarém, e compra, a um tal Viriato, uma carreira que fazia Caldas-Cercal-Alcoentre-Vila Franca-Lisboa. Pelo meio, factura-se com alugueres para excursões em Portugal e no estrangeiro. Além das garagens em Lisboa e em Leiria, outras vão surgindo nos destinos das várias carreiras, aumentando o património imobiliário da empresa.A sociedade irá manter-se até ao fim dos anos quarenta, altura em que os dois sócios se desentendem e se separam, ficando um com a frota e o outro com os imóveis. Durante dez anos, os Capristanos comprometem-se a pagar dez contos mensais (uma fortuna na época) pelas garagens de Joaquim Ferreira dos Santos, que assim fica senhor do património e com rendas garantidas. Em breve, porém, Arthur Capristano constrói garagens próprias e lança mais carreiras, reconstituindo a pujança da casa.Na origem do desentendimento entre os sócios terão estado os filhos de Arthur Capristano, José e Artur. Embora não tenham nascido em berço de ouro, tiveram uma juventude dourada. Estudaram em Lisboa, no Colégio Moderno, e cedo começaram a mostrar interesse pelo negócio do pai, atitude que desagradava a Joaquim Ferreira dos Santos e que levou à separação.Com 250 trabalhadores - 125 nas oficinas, 25 nos escritórios e uma centena afecta à exploração, entre motoristas, cobradores, empregados de filiais, ajudantes e fiscais -, o Bombarral revela-se demasiado pequeno para os Capristanos, que decidem mudar-se para as Caldas da Rainha, onde constroem aquela que será a mais luxuosa estação rodoviária da Península Ibérica e uma das melhores da Europa. O edifício, com a assinatura do arquitecto Camilo Korrodi, é inaugurado em Janeiro de 1949.Mais do que uma central de camionagem, o empreendimento foi o primeiro centro comercial da cidade termal. Tinha escritórios, restaurante, café, sala de espera, bilheteiras, tabacaria, barbearia. Vitrinas bem iluminadas serviam de montras às principais lojas caldenses, que ali exibiam os seus produtos, e durante todo o dia os mesmos altifalantes por onde eram anunciadas as partidas e chegadas transmitiam música ambiente. Um verdadeiro luxo para a época.A "Gazeta das Caldas" de 6 de Janeiro de 1949 sublinhava os "cuidados" da empresa com os seus empregados: "Tudo foi conjugado não apenas para que o pessoal dispusesse de instalações próprias, mas até para que o trabalho fosse mais facilitado. A par das camaratas, do refeitório, de instalações sanitárias, de vestuário individual, da comodidade do uniforme, vemos as oficinas higiénicas, cheias de luz e ar, dotadas de aparelhagem própria para facilitar o trabalho, torná-lo menos violento e perigoso." Artur Capristano (neto) não exagera quando diz: "Aquela garagem, apesar do movimento de autocarros a entrar e a sair, estava sempre impecavelmente limpa. Podia-se comer no chão. O meu avô, o meu pai e o meu tio eram extremamente exigentes." Antigos funcionários da firma recordam ainda hoje o asseio do local, o brilho dos metais e dos azulejos. "Havia um empregado", conta Alfredo Gonçalves, "de fato-macaco e boné, que passava o dia a limpar os pingos de óleo no chão."A garagem torna-se ponto de passagem obrigatório do roteiro caldense. Aos Capristanos ia-se passear e ouvir a música ambiente. No café, aos domingos, actuava uma pequena orquestra, para deleite das elites caldenses. E quando, anos mais tarde, surge a televisão, o primeiro café da cidade a ter a "caixa" que mudaria o mundo foi o dos Capristanos. O restaurante, no primeiro andar, era um dos mais conhecidos e caros do país. Há quem garanta que, graças à sua cozinha esmerada, muitos se deslocavam de longe até às Caldas da Rainha de propósito para almoçar ou jantar nos Capristanos. E numa época em que um programa de rádio em directo constituía um verdadeiro acontecimento, das oficinas dos Capristanos foi uma vez emitido o então célebre programa Os Companheiros da Alegria, de Igrejas Caeiro.Com a mudança do Bombarral para as Caldas, a família Capristano levou consigo os empregados. Construiu três vivendas para si, mas também um bairro para o pessoal - casas de um piso, brancas, alinhadas. O Bombarral ressente-se, tal como as Caldas, anos mais tarde, quando a empresa é vendida aos Claras e os trabalhadores, as oficinas e o escritório são transferidos para Torres Novas. Mas, para já, ainda se vivem anos de ouro. Ninguém nega que ali havia dinheiro, fruto de uma gestão rigorosa, é certo, mas sempre em crescendo e bastante para financiar a actividade política (Artur Capristano, filho, viria a ser presidente da Câmara das Caldas da Rainha), o futebol, festas e obras sociais. Já entrado na casa dos setenta, Arthur nem por isso amolece. Mantém-se no activo, embora sejam os filhos a gerir os destinos da casa. O mais velho, José, vive para a empresa, toma as principais decisões, embrenha-se nos escritórios, faz contas, trata dos negócios. Artur ocupa-se da parte comercial e das relações públicas, mas tem outro bichinho a roê-lo: o futebol. Presidente do Caldas Sporting Club, consegue elevá-lo da III à I Divisão. Contrata jogadores estrangeiros, dá-lhes emprego na firma, cria actividades desportivas. Em Março de 1949, a "Gazeta das Caldas" refere, pela primeira vez, a existência do Grupo Desportivo Capristanos, impulsionado pelo "sr. Artur Capristano, leão convicto e desportista de boa têmpera".Teresa Capristano Ferreira de Almeida, filha de José Capristano, conta que nos passeios de fins-de-semana a família costumava visitar as filiais para ver em que estado se encontravam. O pai levantava-se de madrugada e chegava à garagem antes das primeiras camionetas. Por vezes, agarrava no carro e fazia-se à estrada para esperar no destino os primeiros carros da manhã. Consta que os motoristas trocavam sinais quando desconfiavam de que o patrão andava a fiscalizar.Na empresa vivia-se um bom ambiente de trabalho e uma situação laboral apaziguada, de acordo, aliás, com os ditames do regime. A maioria dos antigos empregados refere o carácter austero do velho Arthur e o rigor da gestão dos filhos, mas tem saudades da camaradagem e do clima familiar que então se respirava. Artur Capristano (neto) confirma a dedicação dos trabalhadores à casa: "Nenhum autocarro dormia na rua. Se empanava - e naquela época as camionetas avariavam-se com mais frequência -, os mecânicos iam lá a qualquer hora, arranjavam-na e recolhiam-na, mesmo que trabalhassem de noite ou tivessem de a rebocar."Nos anos cinquenta, com 450 trabalhadores, os Capristanos dominam a Região Oeste. Têm filiais em Lisboa, Leiria, Santarém, Peniche, Torres Vedras, Bombarral, Rio Maior, Alcobaça e Nazaré. A rede de carreiras é densa e serve tudo o que é aldeola nas freguesias mais distantes. O automóvel estava ainda reservado às classes com maiores rendimentos e... com carta de condução; o caminho-de-ferro português definhava, incapaz de acompanhar a modernização das redes europeias. Graças aos planos de fomento, tinham-se construído algumas estradas e Portugal vivia o surto da camionagem.Beneficiando do proteccionismo do regime, o mercado das rodoviárias estava bem dividido, repartindo-se por áreas, sem guerras de concorrência. O Centro do país era dominado pelos Capristanos, pelos Claras (com sede em Torres Novas) e pelos Oliveiras (a norte de Leiria). António Emanuel Botelho, que trabalhou nos escritórios dos Capristanos, diz que "as empresas se davam bem e cooperavam entre si - vendiam bilhetes de umas para as outras e faziam as correspondências dos autocarros e os acertos de contas". Em Leiria tinha a empresa a maior filial, mas lá também arribavam as camionetas dos Claras e dos Oliveiras. Era ali que quem seguia para Coimbra, Viseu, Aveiro ou Porto fazia transbordo.Em paralelo,f+b f-bemerge um outro segmento de mercado - o dos carros de aluguer. Atentos, José e Artur Capristano compram autocarros novos e respondem a todos os pedidos de viagens. Têm motoristas destinados só a estes serviços e esmeram-se na função.Isabel Castro é viúva de Juca Castro, um desses motoristas de elite. Guarda dezenas de fotografias do marido, impecavelmente fardado, em frente a autocarros que faziam furor na época. No verso, as dedicatórias de clientes agradecendo-lhe a simpatia e o profissionalismo. "Uma vez", conta, "deu a volta à Europa e esteve três meses fora de casa.""A frota era muito boa. Tinham autocarros 'pullman', já com casa de banho e bar, que só faziam excursões ao estrangeiro. Isto nos anos cinquenta! Era um luxo para a época", diz Clarisse Cook, a "voz" que se ouvia nos altifalantes da garagem das Caldas.De repente tudo se acaba. A 19 de Dezembro de 1961, a empresa é vendida aos Claras. A notícia cai como uma bomba. As Caldas da Rainha deixam de ser um importante centro de decisão do sector rodoviário, em benefício de Torres Novas. "Foi um prejuízo muito grande para a cidade. Fecharam o escritório. A maior parte do pessoal foi para Torres Novas. Das 150 pessoas, ficaram umas 20", conta António Emanuel Botelho, cujo percurso se identifica com o da camionagem nas Caldas: viveu 16 anos em Torres Novas e, com a nacionalização dos Claras, em Junho de 1977, regressou à cidade termal como funcionário da então Rodoviária Nacional, reformando-se um ano depois. A empresa pública mantém a mesma geografia das antigas empresas privadas que lhe estavam na origem. Mais tarde, com a privatização, a Claras passa a Rodoviária do Tejo, que continua a ter sede em Torres Novas.Por que razão a empresa é vendida numa fase de expansão? Por se adivinharem tensões futuras, quando os filhos e genros chegassem à idade de gerir os destinos da firma? Por visão estratégica em relação à evolução - que se confirmaria no futuro - do turismo enquanto sector emergente? É justamente para esse ramo que Artur e José decidem mudar. Nos anos sessenta começava o "boom" do turismo e, em 1962, os dois fundam a Capristanos Viagens e Turismo, SA e a Citirama - Viagens e Turismo, SA. A ascensão de ambas é meteórica, segundo Artur Capristano (neto), para quem a mudança de ramo "não foi nada mau negócio". Arthur Eduardo Capristano (mantivemos o "h" no seu nome para que não se confundisse com o filho e o neto) morre a 22 de Julho de 1967. Dois anos depois, os filhos desfazem a sociedade e repartem entre si as duas empresas de turismo (ambas ainda existentes). Artur Capristano (filho) morre em 1994, com 71 anos de idade, e o irmão, José, quatro anos depois, aos 78 anos.