Os grandes armazéns nascimento
Duas famílias vivem em sobressalto no Areinho, em Gaia, cada vez que sentem os carros a passarem-lhes por cima da cabeça. É que a casa em que habitam está a pouco mais de três metros aprumados de um dos viadutos do IC23. O proprietário diz que foi enganado pela JAE desde o início do processo.
A recente inauguração de uma loja de produtos culturais, no gaveto das ruas de Santa Catarina e Passos Manuel, veio chamar a atenção para um dos mais notáveis edifícios da baixa portuense.Concebido pelo arquitecto José Marques da Silva para a instalação do edifício-sede dos Grandes Armazéns Nascimento, foi posteriormente adaptado a sucessivas utilizações, as quais, no entanto, muito contribuiriam para a progressiva descaracterização do seu interior.Marques da Silva foi um dos mais proeminentes arquitectos dos finais do século XIX e, principalmente, da primeira metade do seguinte. Natural do Porto, onde nasceu em 1869, tendo também aqui falecido em 1947, diplomou-se na Academia Portuense de Belas-Artes em 1888, partindo no ano seguinte para Paris, onde estudou no "atelier" de Victor Laloux, o famoso arquitecto da gare de Orsay, em Paris.Regressado à cidade natal, consagrou-se ao ensino, na Escola de Belas-Artes, ao mesmo tempo que projectava alguns dos edifícios mais emblemáticos da Cidade Invicta - entre outros, a Estação de S. Bento (1897), o Bairro Operário do Monte Pedral (1899), o Teatro de S. João (1909), os liceus Alexandre Herculano (1914) e o actual Rodrigues de Freitas (1918), o edifício da companhia de seguros "A Nacional" (1919) e a Casa de Serralves (1925-31) -, e também noutras localidades do norte do país, onde se concentrou a quase totalidade da sua obra.No entanto, aquela que no entendimento de Nuno Portas - num pioneiro trabalho sobre a evolução da arquitectura moderna em Portugal -, proporcionou a Marques da Silva "a oportunidade de projectar, com modernidade até aí desconhecida e já empregando o betão, a sua obra maior (e última digna de nota)" foi precisamente o edifício dos Grandes Armazéns Nascimento, cujo primeiro estudo data de 1914.O projecto dos Grandes Armazéns Nascimento tinha sido encomendado a Marques da Silva por António do Nascimento, industrial de marcenaria, proprietário de uma das mais importantes fábricas do sector, situada na rua do Freixo. De acordo com António Cardoso, que consagrou a sua tese de doutoramento à figura e obra de Marques da Silva, António do Nascimento e o seu irmão Venâncio, naturais de Trás-os-Montes, instalaram-se no Porto no início da segunda metade do século XIX, tendo o primeiro inaugurado em 1877 um estabelecimento de marcenaria e loja de mobiliário, na rua da Ferraria de Baixo. Com o desenvolvimento dos negócios, as instalações da firma transitaram sucessivamente para a rua Ferreira Borges e, em 1921, para a rua Passos Manuel.No início da década de '20 a firma "António do Nascimento e Filhos" encontrava-se numa excelente situação económica, como o comprova o facto de dois anos antes ter adquirido a fábrica de marcenaria mecânica a vapor "A Económica" - ainda segundo António Cardoso, ao engenheiro Raul Tavares Bastos -, o que lhe possibilitava o fabrico de mobiliário, a partir de então, em grande escala, transformando-se deste modo num importante empório comercial e industrial. Na publicidade com que nessa época se apresentava, reclamava constituir "a mais importante fábrica de móveis da península, e o maior estabelecimento de estojos, papéis pintados, decorações, oleados e faianças artísticas".Salvaguardando o possível exagero publicitário, não há dúvida que os Armazéns Nascimento e, principalmente, a sua fábrica "A Económica", apresentavam uma enorme capacidade de produção, investindo igualmente na qualidade do mobiliário que fabricavam, não sendo portanto de estranhar que algumas das mais importantes entidades e empresas nacionais contratassem os seus serviços para mobilar e decorar as respectivas instalações.Entre essa requintada clientela contavam-se, para além de muitos outros enumerados por António Cardoso na sua já referida tese - que conheceu recentemente uma edição comercial, sob o título "O Arquitecto Marques da Silva e a arquitectura no Norte do País na primeira metade do séc. XX" -, a Presidência da República, o Grande Hotel do Porto, o Palácio Ford e o Hotel Tivoli em Lisboa, várias entidades bancárias, a Agência Havas, os cinemas S. João e Tivoli, ou os restaurantes Tavares Rico e Escondidinho. Os Grandes Armazéns Nascimento especializaram-se, em grande medida, no fornecimento de mobiliário para a indústria hoteleira tendo, nessa época, fornecido os materiais de decoração de quase todos os grandes hotéis então existentes em Portugal.A necessidade de disporem de um estabelecimento compatível com o elevado prestígio que a firma tinha entretanto alcançado levou António do Nascimento a encomendar a Marques da Silva o projecto das suas novas instalações, em pleno centro da cidade, as quais vieram a ser inauguradas em 1927, precisamente quando a empresa completava meio século de actividade.No seu estudo, António Cardoso refere um aspecto interessante - que nos dá uma ideia das preocupações e do cuidado com que foi concebido este edifício, assim como da importância que o mesmo representava para o encomendador - o qual consistiu no facto de antes de Marques da Silva projectar as instalações dos Armazéns, ter sido convidado pelo industrial para realizarem um périplo pela Alemanha, Países Baixos e França, a fim de observarem estabelecimentos congéneres.Após um pavoroso incêndio ocorrido em finais de 1934 que destruiu os armazéns e a fábrica da rua do Freixo, a empresa nunca mais seria a mesma. Apesar das instalações fabris terem sido de imediato reconstruídas - de acordo com António Cardoso, segundo um projecto de Amoroso Lopes, director dos Serviços dos Grandes Armazéns -, o certo é que em finais de 1939 a firma se vê obrigada a vender o imóvel de Santa Catarina. Apesar dos Grandes Armazéns Nascimento ainda continuarem a ocupar uma parte do edifício, será o aí então instalado Café Palladium que virá a entreter com os portuenses uma relação que se manteve até quase aos nossos dias.