Para que ninguém entenda o caló
Uma questão cultural está a dividir os ciganos portugueses. A União Romani está contra a publicação de um pequeno dicionário de um dialecto étnico, um projecto apoiado pela União Europeia, cujos objectivos são a preservação do "caló" e o seu ensino a meninos ciganos nas escolas. A contenda deixa perceber, por detrás, diferenças profundas quanto à integração social desta minoria. "Que será de nós se toda a gente passar a perceber aquilo que estamos a dizer, principalmente quando se trata de negócios?".
O projecto de publicação de uma espécie de dicionário de romanó caló, um dialecto cigano ainda utilizado em Portugal, está a dividir a comunidade "rom" do país. Por causa disso, a União Romani Portuguesa (URP) está a abandonar todos os projectos relativos à etnia cigana em que, além desta federação, participem, a qualquer título, o sociólogo Carlos Jorge e o seu filho Hugo Maia, também ciganos, e que são os principais promotores portugueses da publicação."A nossa língua é sânscrita [derivada do sânscrito, a mais antiga língua da família indo-europeia] e a nossa cultura é ágrafa", afirmou ao PÚBLICO Vítor Marques, presidente da URP, justificando a indignação da "comunidade cigana" com a hipótese de se vir a tornar pública "uma das poucas coisas que mantêm a identidade do nosso povo". "Que será de nós se toda a gente passar a perceber aquilo que estamos a dizer, principalmente quando se trata de negócios?", questiona. "Assim, depressa estaremos completamente aculturados".Em comunicado divulgado esta semana, a União Romani explica que a hipótese de publicação do dicionário de caló é um "mau aproveitamento de uma parte do Plano de Desenvolvimento da Etnia Cigana, elaborado pela URP, no que concerne ao reconhecimento oficial por parte do Governo da língua romanó". É que, como explica Marques, esta última é uma língua conhecida e falada internacionalmente, enquanto o caló é um dialecto muito próprio utilizado pelos ciganos para não serem entendidos por não-ciganos, uma espécie de último reduto da sua identidade cultural.Invocando esta ordem de razões, a União Romani decidiu, em assembleia geral realizada no fim de Setembro, abandonar todos os projectos e iniciativas, sejam de âmbito local, nacional ou internacional, "onde se encontrem presentes as pessoas referidas". Foi por isso que, segundo Vítor Marques, a URP e cinco associações a ela ligadas (Associações Ciganas de Espinho, Matosinhos e Águeda, "Os Viquingues" e a APODEC) abandonaram já o Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Etnia Cigana (SINA), no âmbito da Rede Europeia Antipobreza, assim como o projecto "Ponte para outras viagens desenvolvendo um interface cultural", da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto. No entanto, ao que o PÚBLICO apurou, o abandono do Grupo SINA por parte da URP já tem quase dois anos. A última reunião em que Vítor Marques esteve presente foi em Dezembro de 1998, tendo a sua desvinculação sido formalizada em Março do ano passado, por decisão da direcção da União Romani, que justificou com "motivos do foro íntimo" não explicitados. Só sete meses depois é que Carlos Jorge entra no Grupo SINA.Quem não aceita os argumentos da URP é Carlos Jorge. Como explicou ao PÚBLICO, o projecto em que está a participar é financiado pela União Europeia e dinamizado pela União Romani espanhola, com a colaboração de linguistas franceses, espanhóis e portugueses e destina-se a fazer a recolha de um "entre as dezenas de dialectos romani" que está em vias de extinção, com vista à elaboração de um pequeno manual de conversação a publicar pelo Ministério da Educação. "Se defendemos um ensino intercultural, temos de promover formas de diálogo que possibilitem o ensino de caló nas escolas para meninos ciganos", sustenta o sociólogo, convencido de que a "actual situação de exclusão dos ciganos é que pode conduzir ao desaparecimento da sua cultura".Carlos Jorge alega ainda que o "secretismo" do caló e o agrafismo da cultura cigana são falsas questões, uma vez que "em toda a Europa há livros e proliferam 'sites' na Internet" sobre ambas. "As pessoas, honestamente, pensam que estão a defender algo que é seu, mas é sabido que uma língua e uma cultura que não são estudadas nem praticadas desaparecem simplesmente".Quanto à postura agora adoptada pela URP, Jorge considera que "ninguém pode falar em nome de toda a comunidade cigana portuguesa, muito menos associações que não se sabe quem representam, não têm eleições e algumas nem existem legalmente". E, em seu entender, "os ciganos têm que adquirir mais cultura democrática para combater a situação de extrema exclusão em que se encontram". Pela sua parte, afirma que nunca se recusará a participar em projectos de desenvolvimento da sua etnia seja com quem for, pois não teme confrontos de ideias.