A desumanização numa fábula
Uma questão cultural está a dividir os ciganos portugueses. A União Romani está contra a publicação de um pequeno dicionário de um dialecto étnico, um projecto apoiado pela União Europeia, cujos objectivos são a preservação do "caló" e o seu ensino a meninos ciganos nas escolas. A contenda deixa perceber, por detrás, diferenças profundas quanto à integração social desta minoria. "Que será de nós se toda a gente passar a perceber aquilo que estamos a dizer, principalmente quando se trata de negócios?".
A ópera em dois actos "The English Cat", com música de Hans Werner Henze e libreto de Edward Bond, tem hoje a sua estreia nacional no Rivoli Teatro Municipal, no Porto, numa versão encenada por Luís Miguel Cintra e com direcção musical de João Paulo Santos. Esta "História para Cantores e Instrumentistas" - subtítulo da obra - põe em cena os temas e obsessões do dramaturgo inglês, sobretudo a desumanização da sociedade capitalista. E fá-lo com recurso a uma fábula, um "drama complacente" protagonizado pelas irmãs Minette e Babette, duas gatinhas do campo, Lord Puff, um gato com "pedigree" e presidente da Sociedade Real para a Protecção dos Ratos (SRPR), Tom, um felino do povo, e Louise, uma ratinha órfã.Sem uma conclusão evidente, "The English Cat" pode ser caracterizada como uma obra política e moral acerca da hipocrisia e da injustiça do mundo. No final, a desencantada apreensão da realidade faz Louise mudar de vida - ao ganhar consciência de classe, esta roedora deixa de servir os seus supostos protectores, ganhando, assim, uma liberdade nunca vivida pelos outros personagens, demasiado ocupados pelas mundanidades quotidianas. Concebida inicialmente como uma comédia, esta peça acaba por sublinhar dramaticamente as contradições do humano, os seus absurdos duelos. E, embora a fábula possa amenizar a dimensão crítica de outros trabalhos de Bond, ela é suficientemente clara para não deixar dúvidas: "A verdade prevalecerá, a SRPR ficará com o dinheiro, mais ratos aprenderão a respeitar os seus superiores e os advogados receberão avultados pagamentos". Habituado a trabalhar textos de Bond, Luís Miguel Cintra sentiu-se "em casa" em relação ao libreto, que caracteriza como um "condensado ligeiro das obsessões do autor". O encenador encontra em "The English Cat" o estilo brechtiano que caracteriza a escrita do dramaturgo inglês: "A acção é por vezes interrompida e as personagens põem-se a filosofar sobre a situação que estão a viver". Cintra reforça ainda a ideia de que "o fim não é explícito, o público é convidado a tirar a conclusão que quiser". Num trabalho em que "o processo de pôr os cantores a representar é bastante complexo", o director do Teatro da Cornucópia recorda que Bond e Henze quiseram escrever uma ópera popular, acessível a um público musicalmente leigo.Relativamente às diferenças entre dirigir actores ou cantores, Cintra esclarece que, à partida, a estrutura de uma ópera tem de estar mais definida do que a de uma peça de teatro: "É difícil realizar um trabalho progressivo, espontâneo, com os cantores, pois eles têm de ter uma precisão quase matemática prévia à encenação". Neste caso, pede-se aos cantores "que pensem, que sejam intérpretes da obra". O encenador revela mesmo que tem aprendido muito de música com esta composição "musicalmente complexa", escrita há vinte anos. Os espectadores serão assim confrontados com um trabalho de leitura praticamente original, pois existe apenas uma única gravação de "The English Cat", que não se pode considerar definitiva: "É como se estivesse a descobrir uma coisa nova", afirma o responsável pela encenação.A posição "simples, humilde" em que Cintra se colocou perante a ópera teve como fim a "clarificação de dados lançados pela leitura da obra". Ao pretender sublinhar o que está escrito por Bond, o encenador dá visibilidade ao lado esquemático, quase "infantil", presente na concepção desta peça cantada em inglês: "Se tudo estiver no seu sítio, se tudo for claro e nítido, a leitura é transparente". No processo de preparação de "The English Cat", Cintra procurou escutar as restantes composições de Henze, autor que lhe é familiar, pois elaborou a música do filme "Ninguém Duas Vezes", de Jorge Silva Melo. Para o director da Cornucópia, este compositor tem uma posição singular relativamente à ópera contemporânea, visto não rejeitar a tradição musical: "Mais do que fazer uma ruptura, Henze revê a cultura musical do século XX; quis fazer uma ópera bufa e certamente não se importaria que disséssemos que a ligação entre a música e a cena, apreendeu-a em Mozart".