Torne-se perito

Um quítone chamado Zby

Não lhe vamos dizer o que faz lembrar quítone (deixamo-lo à sua imaginação), mas fósseis destes moluscos foram achados em Portugal pela primeira vez. Há mesmo um, já extinto e que viveu há três milhões de anos, que é de uma espécie desconhecida para a ciência.

A palavra quítone quase nem aparece na maioria dos dicionários de português, por isso é melhor dar já uma definição: é um molusco de aspecto bizarro, por causa de uma carapaça dorsal com oito placas articuladas. Vive nas rochas, come algas e é pequenote (mede, no máximo, quatro a seis centímetros de comprimento). Os quítones andam no mar, sobretudo na zona entre as marés, mas talvez por não nos caírem no prato, por não serem comestíveis, até os dicionários os ignoram. Um investigador português descobriu um quítone novo para a ciência - só que fossilizado - e decidiu baptizá-lo em homenagem a um geólogo cujo nome é incontornável na história da ciência portuguesa, Georges Zbyszewski (Zby para os amigos e discípulos).Carlos Marques da Silva, paleontólogo do Departamento de Geologia da Universidade de Lisboa, trabalha agora na tese de doutoramento, sobre fósseis de moluscos gastrópodes, e encontrou em Vale de Freixo, na região de Pombal, 40 plaquinhas dorsais isoladas (ou valvas) de quítones. Soube logo que eram destes moluscos: "Esta é a primeira vez que se identifica este tipo de animal no registo fóssil português", diz. Mas como não é especialista de quítones, bisbilhotou na bibliografia internacional quem andava a fazer os trabalhos mais interessantes sobre estes animais - e encontrou Bruno Dell'Angelo, vice-presidente da Sociedade Italiana de Malacologia. Mandou-lhe as 40 placas dorsais por correio, em 1996, e de lá veio a confirmação de que um dos animais não correspondia, de facto, a nada conhecido no mundo vivo nem fossilizado. O quítone em questão viveu há uns três milhões de anos, na época do Pliocénico superior e mediu uns cinco centímetros. A par do fóssil da nova espécie, os outros fósseis de quítones pertencem a quatro espécies já conhecidas e que ainda existem (três nas costas atlânticas da Europa, incluindo em Portugal, e uma apenas no Mediterrâneo). "É a primeira vez que se refere a existência destes fósseis em Portugal", resume Carlos Marques da Silva. As novidades serão anunciadas no próximo mês, num congresso em Génova, Itália, e no próximo ano serão publicadas numa revista italiana, o "Bolletino Malacologico". Ainda que haja uma única referência ao aparecimento de fósseis de quítones em Portugal, em 1941, a verdade é que não passa de um nome numa listagem de espécies do Pliocénico da região da Marinha Grande: os fósseis chegaram a ser identificados por um paleontólogo do Museu Britânico de História Natural, Reginald Cox, por sinal como sendo de uma espécie diferente das agora descobertas, mas não foi feita qualquer descrição nem ilustração. Dado ser impossível examinar esses espécimes, que teoricamente estarão no Museu Geológico e Mineralógico da Universidade de Coimbra, Carlos Marques da Silva não conseguiu confirmar ou refutar a ocorrência dessa espécie. "O museu de Coimbra não sabe onde está esse material." Por isso, o trabalho de Carlos Marques da Silva e Bruno Dell'Angelo é o primeiro a confirmá-lo sem margem para dúvidas. Como só as placas dorsais dos quítones (os elementos que constituem a sua concha carbonatada) fossilizaram (e isoladamente) - as partes moles do organismos degradam-se - é isso que nos chega. Nas imagens, vê-se a concha de um quítone em geral e, de forma mais pormenorizada, um desenho que Carlos Marques da Silva fez para o PÚBLICO. À nova espécie, o paleontólogo português decidiu chamar "Ischnochiton zbyi": o segundo nome é uma homenagem ao geólogo Georges Zbyszewski, tal como é explicado no artigo a publicar no "Bolletino Malacologico": "Foi Georges Zbyszewski quem, no final dos anos 40, descobriu os afloramentos fossilíferos da região de Pombal, onde se localiza Vale de Freixo." E porquê Zbyi e não Zbyszewskii? "Porque Zby era o nome afectivo pelo qual todos o conheciam", responde Carlos Marques da Silva. Zby era, de facto, a forma carinhosa como todos o tratavam, incluindo os funcionários do Museu do Instituto Geológico e Mineiro em Lisboa, onde, até meados de Dezembro de 1998, ainda ia diariamente. Georges Zbyszewski morreu em Março de 1999, aos 89 anos, em Lisboa e é uma referência obrigatória na história da geologia, paleontologia e arqueologia em Portugal. Nascido a 22 de Outubro de 1909, em Gatchina, na Rússia, chegou a Portugal, em 1935, a pensar na tese de doutoramento. Não sonhava que ficaria por cá e calcorrearia o país em inúmeros levantamentos de geologia, em que lhe foram aparecendo fósseis de dinossauros e não só (de mastodontes, rinocerontes, antepassados dos cavalos ou mesmo bifaces do Paleolítico...). Mas para que interessa agora estudar um molusco como os quítones, que não são comestíveis e, para mais, um deles já nem sequer existe? É que os quítones (vivos ou fossilizados) dão informação sobre o clima da Terra no passado, por exemplo. Uma das espécies cujo fóssil foi encontrado em Portugal já só vive no Mediterrâneo. "Desde o Pliocénico até à actualidade, a sua área de distribuição restringiu-se: deslocou-se para sul, para paragens mais quentes. Isto indica que no Pliocénico superior, há cerca de três milhões de anos, a temperatura da água do mar à latitude de São Pedro de Muel (na costa portuguesa actual, aproximadamente à latitude de Pombal) seria mais elevada, equivalente à do Mediterrâneo, quase no limite da zona tropical", explica o paleontólogo. "Corrobora a hipótese de que há um deslocamento da fauna de moluscos para sul ao longo do Pliocénico." Na verdade, há mais ou menos 2,7 milhões de anos começou em força a glaciação no hemisfério norte, levando muitas espécies a desaparecer do Mediterrâneo: "Como a jazida de Vale de Freixo é anterior a esse arrefecimento, ainda tem uma fauna quase tropical." Os gastrópodes que Carlos Marques da Silva estuda, e que aparecem em associação aos quítones, dão indicações semelhantes. E agora o paleontólogo deixa uma pista a quem tenha nas suas colecções placas semelhantes: "Vejam as coisas que lá têm e não sabem o que são. Agora, têm mais um ponto de referência: o quítone do Zby."

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