As últimas tabernas
Fomos à procura das últimas, genuínas e inalteradas tabernas de Lisboa. Descobrimo-las, poucas, decadentes e melancólicas como em São Bento ou Alcântara, ainda animadas como as de Alfama, agitadas como a "Flor do Minho" na Mouraria, onde ainda se joga dominó e os copos saem aos três e quatro das mãos de um sósia de Vasco Santana. "O dono da tasca não se responsabiliza por qualquer queda sofrida pelos bebedores", lê-se nas paredes de uma tasca de Alfama.
"Isto aqui é o símbolo de Portugal", diz um dos clientes de Manuel, mais conhecido por "Pepe", naquele princípio da noite na taberna junto do Príncipe Real, em Lisboa. Ergue um copo de vinho saído ali mesmo da pipa de madeira e ressalva: "E olhem que eu não sou salazarista!"Todos de tez rosada, alegres quanto baste, um grupo "excursionista" de uns quatro inveterados amigos do vinho junta-se ao balcão de mármore e confraterniza, como nos velhos tempos, como devia ser sempre. "Vá lá", pede o "Pepe", que quer fechar as velhas portas de madeira. "Só mais um", pede um não identificado mas feliz condutor de eléctricos que se foi pentear para a fotografia.De tarde, Manuel, o taberneiro do 54 da Rua Cecílio de Sousa asseverava que os velhos clientes já tinham morrido todos. Um rapazinho entrado para encher uma garrafa de plástico de vinho branco que o taberneiro fez jorrar de uma vasilha de metal, era a única nota de juventude. O taberneiro retirava uma Sumol de dentro do frigorífico Kelvinator e servia a garrafa a um velhinho que nada dizia, sentado num banco de madeira, os braços sobre o mármore da mesa. Uma velha senhora entrava pelas pequenas portadas em madeira e vidrinhos coloridos e sentava-se com três envelopes na mão dentro do balcão. O taberneiro, limpadas as mãos a uma toalha pendurada numa das três pipas, uma garrafa de aguardente São Barnabé em cima de uma delas, pedia-lhe o envelope. "Vamos lá ver isto... olhe, este envelope é do Banco, deve ser o extracto da sua conta, vamos lá ver." Abriu o envelope e piscou o olho a um cliente de cabelos brancos: "Você está cheia de dinheiro... vá, tome lá." Pegou nos outros dois envelopes, bem identificados pelo emblema encarnado do Sport Lisboa e Benfica: "E , isto eu não quero nem saber que eu não sou do Benfica."Uma idosa entrou e sentou-se na mesa do canto. Atrás, colados nos azulejos, vários autocolantes remetiam para outros tempos. Um anunciava a nova lâmina NACET Platina, outro incitava-nos a beber Cergal, outro ainda anunciava a cerveja Clok e havia ainda um autocolante da Cerveja Marina. Por cima, numa estante, alinhavam-se garrafas empoeiradas de vinho de mesa branco "Vale Quente", um boneco de porcelana de um jogador do Belenenses e um relógio que dá as horas sobre um emblema do clube do Restelo. A idosa pediu um café e iniciou aquilo a que poderíamos chamar uma espécie de ronda em jeito de monólogo sobre as desventuras de alguns elementos da vizinhança. "A gaja metia-se na banheira e eu a apanhar chuva cá em baixo... ai, que não sabia que não podia tomar banho de imersão... aquilo era uma cowboyada todos os dias, levavam lá para cima garrafas de vinho branco, era a noite inteira que eu não conseguia dormir..." Alguém comentou que não seria só vinho: "Tenho a impressão que havia lá outras coisas..." A mulher não tardou a concordar: "Sim, drogas, eu sei lá..."As últimas tabernas de Lisboa, genuínas e inalteradas, balcão de mármore, vinho da pipa de madeira, azulejos brancos com os típicos cachos de uva nas bordas, contam-se pelos dedos. De Alfama a São Bento, do Desterro ao Principe Real, poderão não ser mais de quinze. Descobri-las não foi tarefa fácil. A maioria foram transformadas em snacks, bares, cafés. "Era uma taberna", explica-nos alguém à porta do bar do número 9 do Páteo do Tijolo, ao Príncipe Real, "há uns anos atrás". A indicação tinha-nos sido dada por um taxista, o mesmo que nos levara ao engano para "uma tasca" na Madragoa e para "outra" inexistente junto ao Cemitério do Alto de São João. "Aqui no Beato e em Marvila?", perguntou um taxista nascido na zona, "oh... havia muitas mas estão transformadas em cafés, snacks e restaurantes". Joaquim Nunes, taberneiro em Alcântara, que foi para aquela zona da cidade com 11 anos, recorda: "Quando eu era puto, em Alcântara era tudo tabernas, não havia discotecas. Agora..."Quando perguntamos por tabernas, a resposta é quase sempre a mesma: "Oh, isso já não existe" ou "está tudo a desaparecer". Muitos taberneiros, velhos e cansados, respondem quase com azedume: "Mas essas perguntas são para quê? Isto não interessa a ninguém." Explicava Joaquim Nunes, à frente das pipas e dos funis para o vinho da sua tasca no 30-C da Rua Maria Pia: "Os velhotes estão a acabar e os novos só querem beber cerveja."O retrato acabado da saturação é Arlindo Pedro, 69 anos, ex-embarcadiço, meio surdo, taberneiro no 30-A da Rua Maria Pia. "Estou cá há 25 anos e já não tenho mais paciência para isto. Estou cansado e velho, fartíssimo. Quero passar isto e ir para os Inválidos do Comércio, que nem tenho casa nem família", afirma. "Ainda por cima, puseram-me uma puta de paragem de autocarros à porta, é só poluição e barulho." Algumas das que restam são hoje lugares de silêncio, envelhecimento e nostalgia. Cansaço de uma vida atrás do mármore, saudade e melancolia de uma Lisboa que não volta mais. Desconfiança também. Desconfiança e medo dos novos tempos, dos fiscais da Câmara, dos "drogados", dos "pretos das obras". Por vezes, um rosto novo pode ser uma ameaça."Identifique-se", pede-nos agressivamente um alcoólico numa taberna da Praça das Flores, uma mão agarrada a um copo de branco, o nariz abatatado e arroxeado. "Entra por aqui dentro a tirar as medidas à casa, quantos litros tem cada pipa, como é isto ou aquilo...""Não tenho tempo para responder a perguntas", dispara o taberneiro de cabelos brancos e meio-surdo de uma tasca de São Bento enquanto retira uma Sagres de um velho frigorífico Zenith. O não a entrevistas estendeu-se a uma adega ao Poço dos Negros- ""a ter que falar desses malandros do governo e ia sair prejudicado"- e foram vários os taberneiros que recusaram fotografias por recear má publicidade. "Não, não", pediu um taberneiro de Alcântara, "eu quero passar a tasca e fotos só dão má publicidade". "Ai, ai, ai, já são fotografias a mais!", rebentou a esposa do taberneiro do número 30 da Conselheiro Arantes, ao Desterro, ao ver a fotógrafa invadir demasiado tempo o território do marido. "Não preciso cá de mais fotografias, ainda ontem cá vieram", explicou, imerso em semi-depressão, os braços sobre o balcão, o dono da tasca do 70 da Rua de São Tomé, perto do Miradouro de Santa Luzia.As últimas tascas da área de São Bento são quase todas melancólicas, a caminho da auto-extinção. A casa do taberneiro do número 59 da Rua Cruz de Poiais é já ali, por detrás de uma porta de madeira à esquerda do balcão, sempre aberta, e de três pipas de vinho. Do lado direito, há um pequeno lavatório em azulejo branco, uma bica, um pequeno espelho e um pano. É por ali que passa periodicamente uma velha senhora de cabelos brancos, rosto cor de cera, debitando frases desconexas e que o dono da tasca manda para dentro. Sentamo-nos a beberricar uma cerveja numa das mesas de tampo de mármore e vemos uma certa Lisboa a morrer ali mesmo nas mãos enfiadas no rosto do único cliente, entre o tédio e a depressão. Por trás dele, cachos de uva bordejam e decoram os azulejos . Uns quarteirões mais acima, fica a melancólica tasca da Dona Benilde. "Aqui havia uma parede e ali era a carvoaria". A Dona Benilde de Lima fala de dentro do balcão de mármore da taberna da Praça das Flores como se ainda estivéssemos nos anos 50, o Capitão Barroso, sogro de Mário Soares, ainda habitasse o nº 15 e o neto Joãozinho entrasse por ali em grande correria. "A mãe da Dona Maria Barroso vinha aqui comprar vinho abafado e a criada comprava carvão e petróleo", explica Benilde, que se lembra do fogão que lhes comprou por cem escudos e ainda guarda o recorte do jornal com a notícia do enterro do Capitão Barroso. "Que grande enterro que saiu dali do número 15".Quando surgiu o gás, a minhota Benilde e o falecido marido modificaram a taberna-carvoaria para casa de pasto. "Passámos a trabalhar com comida, foi até eu poder. O meu marido morreu, agora sou só eu e velha, já não era para estar aqui, já era para estar fora desta vida. Há 20 anos que não tenho férias".A Tasca da Dona Benilde pertence a uma Praça das Flores que foi desaparecendo aos poucos. "A praça era um centro comercial", recorda Benilde, "havia muita peixeira, homens que vinham vender hortaliças em carroças, outros vinham vender fruta em burricos, morava aqui muita gente e tudo preferia a praça porque tinha três padarias, mercearias, drogarias, escola, talho. Foi tudo morrendo aos poucos. Agora é só coisas para gente rica".O vinho que enche as pipas (42 litros cada uma), continua a vir do mesmo armazém do Poço do Bispo mas os clientes antigos, os do copo de dois e de três, são cada vez menos. "Os copos estão a acabar", sentencia Benilde, enquanto serve um copo de branco a um cliente que acaba de entrar.Um pequeno transístor instalado no meio das quatro pipas debita fados- "Lisboa é fado castiço"- e encarrega-se de manter alguma vida no estabelecimento. Por trás da taberneira, a parede forra-se a azulejo branco bordejado com parras de uvas que vimos noutras tabernas e em cima de uma estante de madeira pintada a amarelo há garrafas de Martini empoeiradas. Uma balança foi decorada com dois pequeninos e singelos dálmatas em cada prato. Por cima, dependurados do tecto, pendem um serrote e três potes de barro.A Lisboa do ano 2000, essa, passa à frente do saco de plástico pendurado à porta da tasca para afastar as moscas, como se não quisesse entrar lá dentro e partilhar a penumbra entristecida. Barricada atrás do velho balcão, Benilde tem medo do mundo que vem lá de fora: "Os novos não querem trabalhar. Ainda me lembro de uma senhora na Rua da Palmeira que pagava 25 tostões a uma costureira para a filha estar ali a aprender." Diz um cliente habitual, que veio de Moimenta da Beira: "Às dez da noite já não se pode andar aqui. Quantas vezes eu digo 'Dona Benilde, feche a loja que está escuro e você vai ficar aí sozinha. Anda por aí muito ladrão e drogado'".Benilde teve de esconder o tabaco porque lho roubavam do pequeno armário de madeira junto ao balcão e lembra o susto que levou quando "um drogado" lhe tentou roubar o dinheiro da gaveta. "E, uma vez, um preto que estava ali naquela mesa ao pé da porta saiu sem pagar as cervejas".A Praça das Flores do Capitão Barroso não volta mais: "Naquele tempo era bonito em todos os lados, a gente ajudava-se uns aos outros, toda a gente dava-se com toda a gente. Agora, ninguém tem tempo para nada, é uma correria, não se vai visitar um amigo, um doente".De vez em quando, a taberneira ainda é visitada por uma ou outra pessoa que deixou o bairro e lhe vem fazer uma visita. Entra um casal de idosos: "Boa tarde Dona Benilde..." Cumprimentam-se, falam dos filhos, da saúde: "Está com bom aspecto, Deus lhe dê forças". Quando o casal sai porta fora, Benilde explica: "Eram os donos do cabeleireiro dali. Venderam tudo..."Para felicidade de Benilde, alguns turistas descarregam o flash sobre a taberneira, as pipas e o balcão de mármore. "Os turistas gostam mais disto que os portugueses, o português de hoje é um cidadão vaidoso. Os estrangeiros tiram às três e quatro fotografias. Sentam-se aí, pedem copos de vinho tinto e dizem 'bom, bom'. Até bebem o vinho da garrafa", sorri Benilde, a curiosidade dos turistas como prémio de consolação de uma vida que "mal dá para pagar ao guarda-livros".A mais velha taberna de Lisboa, essa, pode bem ser a do número 30 da Rua Conselheiro Arantes de Oliveira. "Já cá estou há 53 anos", explica o dono, que veio de Valença do Minho para ajudar um tio e por ali ficou, "mas ela deve ter mais de cem anos. Está a ver aquele grupo de excursionistas ali na parede? Já morreram todos... está um vivo, lá para o Canadá, mais nada".Nas paredes a esboroar-se, há uma placa enferrujada da Companhia Portuguesa de Tabacos, uma foto do Grupo Sempre Unidos e Bem Dispostos, de 1944, dois retratos do Sporting e do Benfica dos anos 60 lutando contra o pó e os efeitos da humidade e um quadro com os "Amigos do Dominó", a foto de cada amigo rodeada por quatro dominós. Um cliente senta-se na única mesa, pede um litro de vinho e uma maçã. Outro leva-nos a apreciar a qualidade do carvalho das portas: "Estas portas, feitas com quatro tábuas, isto já ninguém faz... e estas dobradiças em ferro? Já não encontra em lado nenhum!"Sentada na antiga carvoaria, hoje apenas venda de hortaliças e frutas, a esposa assiste à pequena entrevista através de uma pequena janela em arco que lhe permite seguir os passos do marido na taberna. Mal humorada, explode quando a fotógrafa lhe tapa a visão e impossibilita o controlo: "Oh menina, saia daí!"O mau humor ou indisponibilidade de uns - "como vê, temos a casa cheia, não precisamos de publicidade", explicam-nos por entre os presuntos, os ovos cozidos e os pastéis de bacalhau da Adega dos Canários, no Cais do Sodré - é, no entanto, a hospitalidade quase embaraçante de outros. Em Alfama, na Mouraria e até no transformado Bairro Alto há orgulho nas tabernas. Beber e cantar o fado fazem partem da cultura enraizada de bairro. "Querem acabar com as tabernas", lamenta um habitante de Alfama, "querem acabar com as nossas tradições. Agora até colocar um fogareiro à porta para assar umas sardinhas eles querem proibir!"Em Alfama, a Taberna do Julião foi comprada por Gonçalo da Câmara Pereira e transformada em templo diário, a partir das 20h30, de fado vadio. No Bairro Alto, nasceu há uns anos a Tasca do Chico, dedicada ao fado vadio às segundas e quartas. "Alguém tem de manter a tradição", afirma um residente.Alfama, Rua da Regueira, 21h00. António Martins, 49 anos, avia copos de vinho de Torres Vedras cheio a 60 escudos e meio a 30 escudos. "Já ninguém faz este preço", explica o algarvio de Alcoutim e ex-emigrante na Suíça que antes abria às 6h00 da manhã para uma clientela de estivadores e despachantes do Porto de Lisboa que se evaporou. "Oh, os estivadores faziam uma despesa brava, andavam cheios de dinheiro, bebiam muito", conta. Aquela hora, os mais bêbedos dos bêbedos de Alfama assistem ao Partizan de Belgrado-FC Porto, rugas pesadas, conversas desconexas. Um deles, o nariz arroxeado, abatatado e em crosta sai da letargia para gritar "golo!", os braços muito abertos, ameaçando despenhar-se para trás quando Pena empata a partida.Quando tentamos abrir a porta metálica amarela da casa de banho ouvimos um grunhido horrível vindo lá de dentro, seguido de uma forte patada que nos reenvia para trás e nos faz recuar acabrunhados para o balcão. "Atão você não viu que o homem estava lá dentro?", pergunta outro. "Bonsoir", diz-nos um elegante e impecavelmente vestido senhor de carapinha branca que descobriremos mais tarde ser engraxador. "La prochaine bière, je paie". O taberneiro: "Tu pagas o quê, não tens dinheiro para pagar a tua despesa..." O simpático homem, a mão direita grudada no copo de tinto, mexe os olhos e a boca com lentidão: "Moi, Congo Belge". Comenta António Martins: "Mas tu sabes falar português, estás a falar ao homem em francês, porquê?" O homenzinho não desarma. Vai buscar a caixa de engraxar e insiste em que coloquemos ali os ténis. Explicamos que os ténis não se engraxam. "Seulemente pour la photo", diz com um sorriso amável. "Ele já não diz coisa com coisa, percebe, é da bebida"... afirma o taberneiro. Mas nada poderia satisfazer mais o engraxador do que aquela foto, os ténis na caixa de engraxar e ele, brilhozinho nos olhos, fingindo que engraxava para a fotografia: "Merci..." Diz o taberneiro: "Ele já está bêbedo...vamos lá que tenho de fechar a casa!" O decano das tabernas de Alfama e provavelmente de toda a Lisboa, é Manuel Bento, natural de Mação, 85 anos de idade e 70 de tasca, mercearia e ex-carvoaria. Para lá entrar, é preciso atravessar a mercearia pequena e preparar o olfacto para o cheiro a sebo. Bento é benfiquista mas a maioria dos seus clientes são sportinguistas, 20 dos quais se encarregaram de lhe pintar a tasca de verde e de criar o núcleo de sportinguistas da Tasca do Bento. "Isso foi tudo decorado por um que anda para aí armado em maluco", explica Bento, habituado há 70 anos à oscilação dos clientes: "Oh, eles vão e vêm como o vento."Nas paredes, não faltam avisos - "Isto não é uma Igreja mas por favor não berres"-, manifestações de fidelidade dos clientes à Tasca do Bento e de reconhecimento ao anfitrião. Vê-se um "Diploma dos 80 anos Equilibrados" de Bento e versos como este: "É uma tasca bizarra/ de malta fixe e leal/ canta-se fado sem guitarra/ e joga-se às cartas mal".Largo do Terreirinho, Mouraria. Um "dread" negro de carapinha em pequenas tranças entra na Flor do Minho, também conhecida como a "Tasca das Sardaniscas" e procura rápidamente catar do chão todas as beatas que puder. João, um sósia de Vasco Santana, que está ali desde as 6h00 da manhã a servir brancos e tintos atrás do balcão, bate com a palma da mão no alumínio e depois mexe com força nas garrafas para assustar "o bicho", para que se escapula porta fora. Benvindos à tasca mais animada de Lisboa. A única em que Jacó, o papagaio, é convidado diáriamente a morder as grades da gaiola e a escapulir-se. "Jacó", grita um bêbedo residente,"tric tric tric, vá, corta, corta, ahaha". Os homens que jogam dominó e o jogo dos cavalinhos não gostam de tanto barulho: "Atão mas isto é alguma taberna ou quê?" Jacó, esse, é tratado carinhosamente pelo dono, João, que colocou um espelho dentro da gaiola e diz: "Vá, Jacó, fala com o teu irmão, Jacó..."Nas paredes, entre um emblema do Benfica de 68/69, lemos os estatutos da Associação Técnica de Copofonia do Norte a Sul de Portugal, criada em 1935: "Esta associação dará um subsídio de cinco litros de verde ou maduro por dia ao sócio que (...) consiga arranjar estes sinais: 1º olhos inflamados e remelados; 2º rosto cor de camarão; 3º nariz cor de cenoura e em forma de torneira; 4º baba cor de borras de vinho." Terceiro artigo dos estatutos: "Recusar água de toda a gente".Assumidos 46 anos de puro álcool, S. bate violentamente na porta da casa de banho: "Adormeceste aí dentro, é?" Durante dez minutos não larga a porta: "Está alguém a dormir lá dentro, eheheh". Só mais tarde lhe explicam que a chave está atrás do balcão e que não se encontra ninguém lá dentro. S. pega numa criança que entra por ali dentro e mete-a de cabeça para baixo, a cabeça no caixote do lixo. "Deixem o puto, depois eu é que tenho de ouvir a avó!", grita João, detrás dos seus farfalhudos bigodes. "Isto é só reinação, somos todos amigos, aqui toda a gente respeita toda a gente", explica Vitor "Estivador", outro animador da casa, considerado por muitos o "bêbedo número um": "É vê-lo a beber garrafas de litro e meio!" Vitor gosta de cantar o fado que sopra por entre um intervalo nos dentes da frente. "Isso é p'ra que jornal? Fotografem aqui o Jack Palance" e traz consigo um velho frequentador de olho direito tapado. Outro frequentador recebe o copo de branco que lhe oferecemos com um sorriso deliciado. "Estás cá amanhã? Amanhã trago-te uma t-shirt da SIC, da Fátima Lopes. Eu já estou velho para usar aquilo e a ti fica-te bem." Depois senta-se, sempre a olhar para nós, de sorriso matreiro e a disparar para uma mulher ao lado: "Eu conheço o gajo, eu conheço o gajo..." Quanta animação... Parecem todos concordar com a máxima que lemos na Tasca dos Passarinhos, na Rua do Norte, Bairro Alto: "Estes filhos deste país vinícola, em vez de se embebedarem todos os dias, ainda censuram aqueles que patrioticamente cumprem o seu dever."