O humor da pantera
Pode-se dizer que Peter Sellers deve o lançamento da sua carreira a uma pantera. Cor de Rosa. É exactamente como Jacques Clouseau, o ridiculamente incompetente inspector da polícia francesa, que a RTP1 nos permite reencontrá-lo.
É inegável: o nome Pantera Cor de Rosa (ou Pink Panther, para os anglófonos) ainda encontra ecos hilariantes no imaginário colectivo. Remeterá a maioria, especialmente os mais jovens, para a espantosa figura de rabo comprido, peluda e meio maliciosa de um ser quase humano e no mínimo desconcertante, com um andar de ritmos inesperados e absolutamente memorável. Levando o esforço de memória um pouco mais longe, em busca de detalhes, com certeza se chegará à conclusão de que, em poses mais sofisticadas, mais "blasé", de boquilha comprida entre as garras negras, soltando baforadas de fumo espesso, essa personagem cheia de subtis ambiguidades é inesquecível. É exactamente com a sua presença que, ainda no genérico, começa "The Pink Panther", a primeira de uma série de oito burlescas comédias de sabor policial que Blake Edwards iniciou em 1963 e das quais, a partir deste domingo, a RTP1 faz recordar quatro. No entanto, não se confunda: não se trata aqui de animação; antes, de uma série de burlescas longas metragens de ficção que acabaram por elevar à fama este realizador norte-americano - o mesmo de "Vitor, Vitória", ou "O Amor é uma Grande Aventura". Na verdade, a dita pantera trata-se neste caso de um fabuloso diamante, pretexto para toda uma intrincada, disparatada e, se não hilariante, pelo menos deliciosa cadeia de aventuras e desventuras. Pano de fundo: Itália.Depois de anos na peugada de um notório ladrão de jóias, Jacques Clouseau, um incompetente inspector da polícia francesa, viaja com a mulher até uma luxuosa estância de Inverno de Cortina d'Ampezzo, e acaba por se ver reunido com o "playboy" britânico Sir Charles Williangham (David Niven) e a princesa indiana Dala.Clouseau está seguro de que "O Fantasma", como era conhecido o intrépido ladrão, não resistirá ao cintilar da inestimável jóia da princesa, a célebre "Pantera Cor de Rosa". E de que finalmente será apanhado. Por si. De facto, "O Fantasma" não resiste. Mas isso quer dizer muito pouco. Melhor: quer dizer acima de tudo que a inépcia de Clouseau será de novo posta à prova. E esse é um dos trunfos maiores deste filme. Peter Sellers, um dos mais inspirados comediantes ingleses, foi o escolhido para encarnar a personagem; acabou por se tornar no intérprete favorito de Edwards e na alma de toda a série - passando com ele, de filme para filme, o nome da pantera. Com o seu ar abstrato, impenetrável, Sellers criou de forma absolutamente genial este imbecil agente. Desde o terrivelmente rídiculo sotaque com que enuncia as mais patéticamente erradas deduções até uma absurda e desastrada tendência para o caos e a destruição. É por isso que "O Fantasma" acaba mesmo por conseguir apropriar-se do diamante - durante um fabuloso baile de máscaras que Dala oferece na sua sumptuosa mansão romana onde se cruzam três gorilas; que uma disparatada perseguição de automóveis pode terminar dentro de uma fonte; e que Clouseau consegue acabar por ser acusado do roubo. Pior: a verdade é que "O Fantasma" é nada mais nada menos que Sir Charles Williangham que, na verdade, tem um cúmplice, ou, neste caso, uma cúmplice: a própria mulher de Clouseau (Capucine), que é amante do "playboy".Apesar de tudo, há quem aponte esta burlesca comédia como estranhamente pouco humorística. Sobretudo, porque a história se desenvolve sobretudo à volta de Sir Charles Williangham, o dengoso sedutor encarnado por David Niven, enquanto Sellers fica relegado para um papel secundário. Pouco importa, a verdade é que Sellers consegue acabar por roubar todas as cenas, mesmo contracenando com Niven; apercebendo-se do potencial deste actor, Edwards tornou-o, logo no ano seguinte, protagonista da sequela "A Shot In The Dark". Sellers acabou por se tornar numa vedeta internacional e por fazer centrar em si os seguintes seis filmes da série que Edwards rodou ao longo de trinta anos. De resto, Edwards levou a sua determinação tão longe que, após a morte do seu actor "fétiche", conseguiu ainda fazê-lo protagonizar mais um filme, repetindo ou retirando imagem deixadas de fora pela montagem de filmes anteriores. "The Pink Panther" oferece-nos portanto uma interpretação histórica.