Barcos rabelos em risco de acabar
A Administração dos Portos do Douro e Leixões parece irredutível na sua decisão de acabar com o único estaleiro português que constrói barcos rabelos, situado na zona do Cais de Vila Nova de Gaia. A empresa propôs uma acção judicial contra a APDL, mas somente com o objectivo de poder dialogar com este organismo do Estado.
A construção tradicional dos barcos rabelos pode acabar? A concretizar-se a intenção da APDL (Administração dos Portos do Douro e Leixões), esta pode ser uma realidade bem próxima. Isto porque o único estaleiro do país que constrói as tradicionais embarcações do rio Douro arrisca-se a ser despejado e sem uma alternativa viável de localização. Situada junto ao Largo da Cruz, perto do Cais de Gaia, a Socrenaval (Sociedade de Querenagem e Construção Naval do Rio Douro) recebeu em Agosto uma carta da APDL a denunciar o contrato de licenciamento e a intimar os donos do estaleiro a saírem do local até 30 de Setembro. Inconformada, a Socrenaval, que também repara todos os barcos rabelos que navegam no Douro - e outros de pesca -, propôs uma acção judicial por forma a parar a ordem de despejo imposta pela APDL.Da parte da APDL, a única reacção surgiu da parte de Helena Gomes, elemento das relações-públicas daquele organismo, que disse ao PÚBLICO saber apenas que "no dia 30 de Setembro terminava o prazo para o estaleiro sair daquele sítio, mas essa decisão ficou suspensa por o caso estar em tribunal". Sucinto foi Poças Martins, presidente da Fundação do Centro Histórico de Gaia e da Empresa "Águas de Gaia": "É um assunto entre senhorio e inquilino, no qual não tenho de me envolver".De facto, a questão é mesmo entre o administrador do terreno (APDL) e o arrendatário (Socrenaval), ainda que este problema possa envolver questões como o interesse cultural e histórico dos rabelos. "Em 1996, a APDL escreveu-nos uma carta a comunicar a existência de um plano de requalificação da marginal, que contemplava o alargamento da via pública, a colocação de um interceptor de saneamento e um arranjo urbanístico devidamente enquadrado nesta zona histórica", contou ao PÚBLICO António Sousa, um dos três sócios-gerentes da Socrenaval.Na altura, foi proposta à empresa a elaboração de um projecto de remodelação do estaleiro, "sempre na perspectiva de permanecer no local", adianta António Sousa, que elaborou e apresentou à APDL uma memória descritiva. Este organismo exigiu então um projecto que obedecesse aos critérios de requalificação urbana ou a empresa era forçada a abandonar as actuais instalações, local de interesse histórico.Uma exigência que a Socrenaval cumpriu, entregando mais tarde um projecto de execução. "A APDL disse-nos que o projecto estava perfeito, faltando apenas o projecto de pormenor, e era só uma questão de tempo até que tudo fosse aprovado e se assinasse um contrato renovável de cinco em cinco anos [até agora era de seis meses]", declarou António Sousa, que chegou a ouvir palavras de apoio à continuação do estaleiro naquele local da parte de Luís Filipe Menezes, presidente da Câmara de Gaia."Na perspectiva de nos mantermos lá, aumentámos a actividade e tomámos conta de compromissos para cerca de três anos", acrescentou este empresário, que tem a seu cargo um total de dez trabalhadores - o mais velho com 73 anos e o mais novo com 23 - e que inclusive já tentou, em Abril último, contratar mais pessoal junto do Centro de Emprego e da Junta de Freguesia da Afurada.A primeira surpresa surgiu em finais de Julho, quando a APDL disse que não via com bons olhos a permanência do estaleiro naquele local, apresentando como alternativa a zona da Afurada. "Isto depois de termos apresentado todos os projectos necessários e de nos ter sido dito que era só uma questão de tempo até a remodelação do estaleiro poder começar".Confrontado com esta mudança de rumo das intenções da APDL, António Sousa até nem se surpreendeu, pois o seu objectivo é poder continuar a trabalhar. "Desde que os estaleiros não tenham de parar, não há problema. É que nós temos prazos a cumprir e por cada dia de atraso em relação ao contratado temos de pagar 50 contos de multa".Em meados de Agosto, a surpresa foi ainda maior: a Socrenaval recebeu duas cartas da APDL (a segunda das quais registada e com aviso de recepção), ambas com o mesmo conteúdo: a empresa tinha até ao dia 30 de Setembro para deixar livre aquele espaço, sem que fosse apresentada qualquer alternativa imediata.António Sousa estabeleceu, então, vários contactos com a APDL, que lhe comunicou a irreversibilidade da decisão, mas que "dentro de dois ou três anos haveria um novo local na Afurada". "Então e daqui até lá? Mandamos as pessoas embora e esperamos calmamente que passem os dois anos?", questiona.Por isso, a Socrenaval moveu uma acção judicial à APDL para parar a decisão de denunciar o contrato, "mas isso aconteceu no limite de todos os esforços, porque esta é claramente uma situação de injustiça". Uma das situações que mais desagrada a António Sousa é que, "se o despejo se concretizar e este estaleiro acabar, não há quem fabrique barcos rabelos na sua forma tradicional. Depois, daqui a uns anos, vão lamentar o seu desaparecimento, mas nessa altura pode ser tarde demais".