A Intifada entrou em Israel
O maior receio de Israel concretizou-se na violência que nos últimos dias tem abalado o Médio Oriente. Mas esse receio não era que os palestinianos pegassem a armas nos territórios ocupados. Era que os palestinianos pegassem em pedras já dentro de Israel. O último balanço da "Intifada de al-Aqsa" eleva-se a 63 mortos e mais de mil feridos.
A principal estrada para Um el-Fahm parece uma paisagem urbana de Beirute por volta de 1982. Carros incendiados abandonados na estrada, pneus fumegantes e lampiões partidos ao meio. À entrada da cidade, jovens palestinianos encapuçados - com pedras e fisgas na mão - atiram uma pedra, um aviso subtil de que este lugar é interdito a israelitas. "Nós não somos israelitas. Somos jornalistas." Só depois deste grito de esclarecimento e de uma verificação das credenciais de imprensa da Autoridade Palestiniana é que o repórter do PÚBLICO foi conduzido para o interior da localidade, pelo meio de uma estrada montanhosa.É um ritual que se tornou comum em todas as aldeias e cidades palestinianas em Gaza e na Cisjordânia. Que continuam interditas a israelitas e ainda em turbulência, cinco dias depois de um dos líderes do Likud [partido da direita israelita, na oposição], Ariel Sharon, ter levado a sua "mensagem de paz" à mesquita islâmica de al-Aqsa, na zona árabe de Jerusalém-Leste, e quatro dias depois de a polícia israelita ter morto cinco palestinianos que protestavam contra a visita. A revolta já causou as mortes de pelo menos 63 pessoas, na sua maioria palestinianos, e mais de mil feridos.A diferença de Um el-Fahm é que esta não é uma aldeia palestiniana em Gaza ou na Cisjordânia. É uma cidade árabe em Israel. E são os protestos dos palestinianos nestas localidades - e as pedras e fisgas que eles usam - que se tornaram no mais aterrorizante aspecto da revolta (a que já se chama a "Intifada de al-Aqsa") para os judeus israelitas. Pois estes palestinianos não estão, parafraseando o primeiro-ministro israelita Ehud Barak, "do outro lado". Eles estão "aqui", cidadãos árabes do Estado judeu.A revolta continuou ontem. À volta do enclave judeu na cidade palestiniana de Nablus, na Cisjordânia, novos confrontos com armas de fogo explodiram entre o exército israelita e combatentes palestinianos tanzim [os mais activistas da Fatah de Yasser Arafat, que por vezes escapam ao controlo do líder palestiniano]. Em Rafah (Gaza), tanques e helicópteros israelitas bombardearam posições das forças de segurança e zonas residenciais. Em Netzarim, colonato judeu em Gaza, helicópteros israelitas voltaram a disparar mísseis antitanque contra palestinianos, matando três e aumentando para 63 o número de mortos desde o início desta sublevação.Em Israel, milhares de pessoas participaram na cidade de Nazaré (de maioria palestiniana) no funeral de um dos seus, morto pela polícia israelita na segunda-feira. Previsivelmente, o funeral degenerou em confrontos, que deixaram 22 palestinianos feridos, embora, milagrosamente, nenhum morto. Em Um el-Fahm - que perdeu três dos seus habitantes nos últimos três dias - todas as estradas que conduzem à cidade foram fechadas por ordem militar, com a polícia a impedir a entrada de todos os carros num raio de cinco quilómetros. Mas nenhum destes sítios continua na prática a fazer parte de Israel: para os seus residentes e para a polícia israelita, eles passaram a ser territórios palestinianos ocupados.Ao todo, já morreram nove palestinianos de cidadania israelita na revolta, a pior carnificina contra este povo desde que Israel foi estabelecido em 1948. Mas serão as causas da sua revolta as mesmas que levaram os seus compatriotas para as ruas de Gaza, da Cisjordânia e de Jerusalém-Leste? "Sim", é a resposta de virtualmente todos os palestinianos em Gaza e na Cisjordânia."É claro que ele morreu por al-Aqsa. E o seu sacrifício vai devolvê-la a nós", disse a mãe de Ahmed Ibrahim Siam, de 18 anos, morto a tiro pela polícia em Um el-Fahm na segunda-feira. Mas a maioria dos que ontem se juntaram ao velório na casa da sua família insistem que não foi apenas a violação deliberada de al-Aqsa por Sharon que enfureceu os palestinianos. Tal como nos territórios ocupados, foi a resposta excessiva aos protestos que se seguiram à visita do homem do Likud que empurrou os palestinianos nos territórios ocupados a pegar em armas e os palestinianos de Israel a pegar em pedras.Em Israel, a primeira resposta dos palestinianos às mortes de al-Aqsa foi fundamentalmente pacífica, com uma greve geral neste sector de um milhão de habitantes, seguido de protestos sem armas nas principais cidades palestinianas. A reacção policial consistiu em disparar balas de aço revestidas por borracha, primeiro em Um el-Fahm, depois em Nazaré, depois nas cidades árabes de Arabeh, Jatt e Saknin. "Isto ampliou para nós o que vivemos em todos os dias da nossa vida", disse Suleiman Mahameed, residente em Um el-Fahm. "A nossa vida tem pouco valor comparada com a vida de um judeu, para o Estado nós somos cidadãos de terceira classe. Mas se a polícia israelita abrir fogo contra nós, então, certamente, iremos defender-nos."Para além disto, os palestinianos israelitas viram o recurso às balas por parte da polícia como mais um passo numa campanha para tentar criminalizar e brutalmente esmagar qualquer forma de protestos, seja contra o encerramento de fábricas na Galileia ou contra confiscos de terras em (ou perto de) Um el-Fahm e Saknin. É uma campanha que tem sido justificada por políticos como Sharon em nome do combate ao "terrorismo islâmico" e legitimizada pelo silêncio ensurdecedor de Ehud Barak. A posição do primeiro-ministro é particularmente estranha se pensarmos que 90 por cento dos palestinianos israelitas votaram nele nas eleições de 1999.O resultado desta alienação absoluta é uma crescente identificação dos israelitas palestinianos com os aspectos nacionais e religiosos da sua identidade, em vez de uma identidade formal "israelita", e portanto com as lutas e perdas dos seus irmãos e irmãs na Cisjordânia e em Gaza. Na semana passada, a identificação fundiu-se numa revolta conjunta. "E por que não?", pergunta Mahameed. "Em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém, os palestinianos estão a combater pela sua terra, segurança e dignidade. Não são essas lutas as nossas também?"