Dificuldades de quem trabalha
O estatuto do trabalhador-estudante dá uma série de regalias a quem concilia uma carreira com os estudos. Por exemplo: a possibilidade de fazer exames numa época especial em vez de se sujeitar a diferentes provas ao longo do ano. Ou o acesso a aulas nocturnas quando o número de trabalhadores numa escola o justifica. A lei assim estipula. A lei nem sempre é cumprida.
Henrique Cruz é estudante do 4º ano de Geografia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É também professor efectivo do 1º ciclo do ensino básico. André Macias é finalista da licenciatura de Engenharia da Linguagem na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dá aulas de Educação Musical numa escola pública de Sintra. Em comum estes dois universitários têm mais do que o facto de serem professores ao mesmo tempo que são estudantes: conciliam uma carreira profissional e o estudo numa universidade. O normal seria, dizem, que as escolas distinguissem quem já trabalha e facilitassem a tarefa. Mas não é bem assim. Periodicamente, os trabalhadores-estudantes reivindicam mudanças e até já têm saído à rua para protestar contra o não cumprimento da lei. É que desde 1997 existe um diploma que dá regalias especiais a quem está na escola e trabalha. O regime prevê, por exemplo, que os alunos não sejam obrigados a frequentar um número mínimo de disciplinas e dá-lhes o direito de aceder a uma época especial de exames "em todos os cursos e em todos os anos lectivos". A Faculdade de Letras de Lisboa é uma das que não cumprem a lei. "É a única faculdade da Universidade de Lisboa que não respeita, é a única que tem avaliação contínua, mesmo para quem trabalha..." indigna-se André Macias, 22 anos. Já fez queixa a várias entidades, entre as quais a Inspecção-Geral da Educação. Aguarda respostas.A vice-presidente do conselho directivo, Fernanda Gil Costa, esclarece: a lei não é, de facto, aplicada nesta Faculdade de Letras. A escola pediu "um parecer que demonstrou que o diploma não abrange imediatamente e indiscriminadamente todas as faculdades, uma vez que existe a autonomia universitária". "Temos um regulamento de avaliação que precisa de vários requisitos para ser alterado... os órgãos da faculdade estão a estudar o assunto", justifica. Mas por que é que é tão complicado criar um regime especial para os trabalhadores-estudantes? "O nosso regulamento rejeita toda e qualquer avaliação que passe pela existência de uma prova única. Se criássemos um regime especial para os trabalhadores, estaríamos a atribuir-lhes um estatuto discriminatório, porque com uma prova única eles podem passar, mas também podem chumbar. Com a avaliação contínua que praticamos, os alunos prestam várias provas ao longo do ano. E basta que consigam nota positiva em metade para poderem passar...", responde a vice-presidente.Nesta escola existem perto de 400 alunos que também trabalham, segundo dados oficiais. André Macias defende que são muito mais: "Como não ganham nada com isso, muitos não chegam a recensear-se como trabalhadores-estudantes", acredita. De qualquer forma, para ele, o pior já passou. Apesar das dificuldades, só chumbou no 2º ano, e agora está prestes a acabar a curso. Mas indigna-o que, com tanta gente na sua situação, três anos não tenham sido ainda suficientes para a escola alterar as regras do jogo. Na Faculdade de Letras do Porto, ao contrário do que acontece em Lisboa, há uma época especial de exames, como prevê a lei. Só que os alunos garantem que isso não chega e que estão reunidas todas as condições para criar cursos em horário pós-laboral. Mais do que uma vez o assunto foi discutido com o Ministério da Educação e até já há uma promessa: "O secretário de Estado do Ensino Superior disse que seria assinado um contrato de qualidade com a universidade para que a faculdade passe a ter três cursos em regime nocturno", explica Henrique Cruz, representante dos estudantes no conselho directivo. Só nesta faculdade existirão para cima de 1200 trabalhadores. Henrique Cruz recorda o que diz a lei: "O Governo deve fomentar a criação de aulas nocturnas onde o número de trabalhadores-estudantes inscritos o justificar". "O problema é que 'deverá' é pouco... Nesta faculdade o peso dos trabalhadores-estudantes é de quase um quarto dos matriculados" e, continua o estudante, uma vez mais, pode não ser este ano que o ministério disponibilizará os meios para que se concretizem as aulas nocturnas. Apesar de tudo, Henrique reconhece que desde 1997 as coisas mudaram muito. "Em 1993, quando entrei na faculdade, era bem pior. Havia docentes que claramente diziam que não podíamos fazer o curso... A publicação da lei do trabalhador-estudante ajudou muito a mudar mentalidades". Falta o resto. É que, dizem os alunos, já basta que muitas empresas e organismos públicos não proporcionem - aos seus trabalhadores que estudam - as regalias previstas na lei (horários flexíveis, por exemplo). António Silva, representante dos trabalhadores-estudantes da Universidade do Porto e funcionário público, é um dos que se têm batido para que empresas, e sobretudo a Administração Pública, cumpram o que está previsto na lei: "Há trabalhadores com enormes dificuldades que estudam e depois não vêem as suas habilitações reconhecidas. Acontece muito na polícia, por exemplo. Noutros casos são os organismos públicos que recusam que os seus trabalhadores faltem ao trabalho, até para fazer os exames... Lembro-me do caso de uma enfermeira que frequentava um curso de Nutrição. O chefe dela da Administração Regional de Saúde do Norte disse-lhe que ela tinha que escolher: estudar ou trabalhar...". António Silva vai mais longe: "O Estado é o primeiro a violar as regras que ele próprio fez".