O festival da testosterona
A primeira noite do Festival do Ermal entupiu Vieira do Minho de fãs das novas coqueluches do "rapcore" norte-americano. Limp Bizkit e Deftones brilharam e satisfizeram uma audiência avaliada em dez mil pessoas. O sexo masculino compareceu em peso, num festival em que os preços saldaram.
A passagem dos Limp Bizkit pela segunda edição do Festival do Ermal ia precisamente a meio quando o vocalista Fred Durst, aproveitando uma brecha no alinhamento para analisar com olhos de ver a multidão comprimida diante do palco, atirou a questão inevitável: "Estão aqui muitas raparigas?" A pergunta não era sequer retórica, ainda que tenha servido às mil maravilhas para introduzir a habitual versão desgrenhada do clássico "Faith", um tema do sexualmente ambíguo George Michael. A verdade é que raramente se terá visto em Portugal um festival tão masculino como este que anteontem juntou entre dez a doze mil pessoas a poucos quilómetros de Vieira do Minho: não passou uma única mulher pelo palco. E a hegemonia masculina repetiu-se na plateia, cuja composição sexual ostentava um desequilíbrio claramente favorável ao género masculino.Em absolutíssima maioria na noite de estreia do último festival do Verão 2000 estiveram também os seguidores dos Limp Bizkit. Não era preciso muito discernimento para dar conta de uma proporção anormal de bonés vermelhos "à la" Fred Durst nas cabeças dos membros da audiência. Uma indumentária que as condições meteorológicas dispensavam bem: a organização respirou de alívio porque a chuvada da véspera, que chegou a ensopar o recinto, não reincidiu, mas o sol também não era a nota dominante à hora em que os Limp Bizkit entraram em acção, 60 minutos antes do inicialmente previsto. Compromissos com outros festivais ditaram uma antecipação das actuações das bandas mais aguardadas da noite, e o primeiro dia acabaria por fechar ao som dos Blind Zero. Mas o desalinhamento do cartaz não terá desagradado aos fãs mais ansiosos, ainda que tenha tido o efeito perverso de não permitir mais do que uma versão condensada dos concertos dos Deftones e da banda cabeça de cartaz. O certo é que a explosão foi violentíssima mal soaram os primeiros acordes dos autores de "Rearranged" e "Just Like This". Os seguidores de Fred Durst não são propriamente pacientes.Nem contidos. O alinhamento, à base do segundo álbum, "Significant Other", mostrou ser aquilo de que os fãs estavam à espera. Os refrões estavam na ponta da língua - como o emissário do público em palco, um tal Filipe, conseguiu provar, num dueto improvisado com o vocalista ao som de "Nookie". A páginas tantas, Fred Durst convidou um membro da assistência a demonstrar a sua competência. E a prova foi brilhantemente superada: o Filipe não cantaria lá muito bem, mas sabia a letra de cor e dominava q.b. a gestualidade "rapper".De resto, os Limp Bizkit ocuparam os restantes 50 minutos de que dispuseram a incentivar o público a saltar, gritar e "levantar o dedo do meio". Passaram pelos sucessos mais óbvios - como "Show Me What You Got", "Break Stuff", "1999" e, claro, "Take a Look Around", tema que integra a banda sonora do filme "Missão Impossível 2" -, mas não esqueceram os amiguinhos House of Pain, de que citaram "Jump Around": "Jump around Limp Bizkit style/Jump up, Jump up and get down." Mas o ingrediente mais impressionante de uma actuação que conquistou a audiência - e, aparentemente, a própria banda, a julgar pelas juras de amor e pelas promessas de regresso com que Fred Durst se despediu - acabaria por ser a parafernália de efeitos pirotécnicos que acompanhou o desfile "greatest hits". O baixo de Sam Rivers, com os seus pontinhos luminosos, e a "body art" do guitarrista Wes Borland, que exibiu um tronco nu completamente transformado em tela de pintura, bem se esforçaram por dar nas vistas, sem grande sucesso. Os fãs vibraram bem mais com as explosões de foguetes e mini fogos-de-artifício que iam rebentando e com a chuva de papelinhos brilhantes que de repente desabou sobre milhares de cabeças.O resto da noite consumiu-se preferencialmente ao som dos Deftones. Os britânicos Muse, que abriram as hostilidades, surpreenderam pela brutalidade das guitarras alimentadas a distorção, mas ninguém os conhecia e poucos pareceram apreciar os desvarios do vocalista Matthew Bellamy, que acabou a actuação empoleirado na bateria, soterrando o seu legítimo ocupante. Ficou a prova de que a admiração pelos Radiohead não é só garganta: o "look" e o som dos Muse deve muito aos ensinamentos da banda de Thom Yorke, embora haja aqui mais brutalidade e um bocadinho menos de génio. Os Deftones constituíram assim, como seria de esperar, outra das principais atracções da noite. Os mais genuínos representantes do circuito "rapcore" norte-americano, que acabaram de lançar "White Pony", foram recebidos por uma plateia entusiasta, mas que estava ligeiramente impaciente pela chegada dos Limp Bizkit. Pelo que um dos momentos mais altos da actuação da banda de Chino Moreno acabou por ser "7 W ords", o dueto que recebeu um inesperado convidado, de boné na cabeça: Fred Durst, claro.O tempo acabou por parecer curto para uns Deftones empenhados em revisitar os três álbuns da carreira num alinhamento heterogéneo, que passou por "Bored" (outro clímax), "Engine No. 9", "My Own Summer (Shove It)" (que Chino Moreno interrompeu para pedir auxílio a um fã ensaguentado), "Be Quiet and Drive" e "Headup". A produção mais recente não foi esquecida: "Feiticeira", "Digital Bath", "Elite" e "Change" serviram para pôr o público num delírio de saltos, braços no ar e exercícios de "mosh". O que veio mesmo a calhar num festival para gente de barba feita, em que até os chuveiros rareiam e os entupidíssimos acessos reclamam pernas bem musculadas e capazes de aguentar meia-dúzia de quilómetros a pé. Mesmo em cima do início do festival, a organização decidiu baixar os respectivos preços, vendendo os bilhetes para os dois primeiros dias a quatro mil escudos (custavam seis mil) e o ingresso para o dia de encerramento, amanhã, a dois contos.