Um túmulo no mar de Barents
Foi tarde de mais. Não há sobreviventes a bordo do "Kursk". Os cadáveres só serão resgatados dentro de um mês. Na melhor das hipóteses. De nada serviu a eficácia dos mergulhadores noruegueses que em dia e meio conseguiram fazer aquilo que durante nove dias os russos não conseguiram. Abriram a escotilha do submarino nuclear russo que está no fundo do mar de Barents e concluíram que está completamente inundado. Vladimir Putin e o seu Governo estão debaixo de fogo porque não agiram com rapidez para salvar os 118 homens que agora estão mortos. Porque mentiram. Porque adiaram decisões. Porque o valor do orgulho é maior do que o da vida de marinheiros, mal pagos e mal equipados. Os líderes "não se afundam".
Estão todos mortos. Já não há esperanças de última hora nem milagres que possam salvar nem sequer um dos 118 marinheiros que constituíam a tripulação do submarino nuclear russo "Kursk", afundado desde o dia 12 de Agosto no fundo do mar de Barents. Não há sobreviventes nem haverá heróis. Agora começa a lenta tarefa de resgatar os corpos, porque sem corpos não há funerais. Foram os oficiais da marinha norueguesa que anunciaram a meio da manhã que a operação de salvamento no "Kursk" ia ser suspensa porque já não havia ninguém para salvar. "Descobrimos que todo o submarino está cheio de água", disse o porta-voz das Forças Armadas norueguesas, John Espen Lien. "Consideramos que não há qualquer hipótese de encontrar sobreviventes no submarino". Horas depois foi anunciado - pela televisão russa RTR - que tinha sido descoberto aquilo que parecia ser o primeiro cadáver de um marinheiro. Estava logo ali do outro lado da câmara da escotilha que os mergulhadores abriram, mas onde não entraram, e estes estariam a tentar retirá-lo com a ajuda de um braço robotizado.Em Murmansk, onde se encontra a maioria dos familiares mais chegados da tripulação do "Kursk", ninguém esperou pela confirmação da tragédia por parte das autoridades russas. Aliás, ninguém sequer ligou às palavras de um porta-voz da Frota do Norte que a meio da tarde decidiu contradizer todos os anúncios oficiais dos seus superiores e afirmou que havia "uma pequena hipótese" de ainda encontrar sobreviventes no "Kursk". Foi um insulto, numa altura em que se falava já na melhor maneira de recuperar os cadáveres. "Foi definitivamente estabelecido que o submarino está completamente inundado e que toda a tripulação está morta", repetiu o almirante Viatcheslav Popov, que dirigiu as operações de salvamento do "Kursk", desmentindo o seu porta-voz.Por esclarecer continua a causa exacta do naufrágio - colisão ou explosão a bordo - mas, ontem, em mais um episódio de desinformação russa, alguém voltou a lançar a tese de que o "Kursk" teria chocado com um submarino britânico. A agência Interfax, citando fontes militares russas, disseram que foram descobertos vestígios da rampa de protecção da ponte de um submarino britânico a 330 metros do navio naufragado.O ministério britânico da Defesa "desmentiu categoricamente" que esses vestígios pudessem pertencer a um dos seus submarinos. E, de novo, os responsáveis da Frota do Norte apareceram na televisão a dizer que nem sequer tinham sido encontrados vestígios. No entanto, o ministro russo da Defesa, Igor Sergueiev, afirmou ao fim do dia que a colisão com "um objecto submarino" de dimensões equivalentes às do "Kursk" esteve na origem da catástrofe.A Rússia já pediu a ajuda da Noruega para recuperar os corpos da tripulação do "Kursk". Segundo o vice-almirante Mikhail Motsak, russos e noruegueses estariam a preparar-se para assinar um contrato para a continuação das operações. No entanto isto não foi confirmado por Oslo. A Stolt Offshore, que é proprietária do barco Seaway Eagle e para quem trabalham os mergulhadores noruegueses, disse que poderia ser muito perigoso para os seus homens entrarem pela estreita escotilha do submarino e procurar corpos na escuridão fria no seu interior. "Naquilo que nos diz respeito, fizemos o que era possível. Entrar no submarino através da escotilha seria extremamente perigoso"; disse Julian Thomson, da empresa norueguesa de exploração petrolífera. Uma coisa é certa, se avançar, esta operação deverá ser lenta e só daqui a um mês ou mais é que as famílias dos tripulantes do "Kursk" poderão reaver os corpos dos seus filhos e maridos.Passaram quatro dias entre as primeiras ofertas de ajuda estrangeira e a aceitação por parte da Rússia dessa ajuda. Em menos de 48 horas os marinheiros noruegueses conseguiram abrir a escotilha do "Kursk". Ontem, Skorgen, o responsável da missão de salvamento norueguesa não se conteve e desabafou toda a sua frustração frente às câmaras da televisão norte-americana ABC. Criticou a burocracia russa e a sua relutância em tomar a decisão de aceitar ajuda internacional. "Irritou-me um bocado sermos obrigados a esperar. Mas isto é um facto, esta era uma operação russa. Nós estávamos a apoiá-los e tínhamos que aceitar esse comando".Em Murmansk, onde "as mulheres choram e os homens cerram os dentes ou agarram-se à garrafa", repetem-se as acusações contra os militares e os políticos. Tudo poderia ter sido diferente se o orgulho de grande potência tivesse dado lugar à humildade de quem não tem como salvar vidas humanas no fundo do mar. Igor Sergeiev, o ministro da Defesa, disse que os responsáveis russos não tinham cometido "erros graves" durante a operação de salvamento do "Kursk". Também confessou que tinha aconselhado Vladimir Putin a não se deslocar a Murmansk. "Na minha opinião não há nenhuma necessidade da sua presença lá", disso o ministro ao Presidente. Ontem Putin triplicou os fundos para as indemnizações às famílias da tripulação do "Kursk", num total que passa a ser equivalente a 54 mil dólares (cerca de 12 mil contos). É pouco mais de 100 contos por cada marinheiro morto no fundo do mar de Barents. "A vida humana não vale muito por aqui. Olhem para a história do nosso país, é sempre melhor alguém morrer do que um segredo ser descoberto.... O nosso Presidente é que tem a culpa", desabafa Natasha Furs, uma estudante de Murmansk. Um jornal de Moscovo encheu a primeira página com fotografias de Putin em mangas de camisa quando estava de férias, na semana passada. Também lá colocou fotografias do ministro da Defesa e do comandante da marinha. "Eles não se afundam" era a manchete.