Apogeu e queda do Condado Portucalense
A família de Mumadona atinge o apogeu com Mendo Gonçalves, neto da condessa e tutor de Afonso V. Mas a estirpe dos condes portucalenses não tarda a entrar em decadência e acaba por se extinguir quando a dinastia de Castela sobe ao trono de Leão. Nuno Mendes, o último conde, morre num derradeiro assomo de rebeldia. Mas a semente estava lançada e, setenta anos mais tarde, Afonso Henriques levava Portugal à independência.
Afonso I, que sobe ao trono em 739, leva a reconquista cristã até ao Douro, chegando a Braga e ao Porto. Nesses mesmos anos, o mundo islâmico era assolado por uma verdadeira guerra civil, para a qual terá contribuído a crucificação (literal) do "wali" Abd Almalique pelos iemenitas, em Córdova, no ano 741. Em 750, era assassinado o último califa omíada do Oriente, Marwan II, cuja família foi também massacrada. O único sobrevivente, Abderramão, fugiu para o Ocidente e chegou em 755 à Península Ibérica, onde foi apoiado pelos iemenitas. No ano seguinte, a sua autoridade era já reconhecida por árabes e berberes, e o Al-Andalus tornou-se um estado independente no seio do Islão, embora reconhecendo a autoridade religiosa do califa, que entretanto trocara Damasco por Bagdad. É o início do emirado de Córdova, que irá durar 173 anos, até 929, quando o oitavo emir, Abderramão III, concede a si próprio o título de califa, decerto instigado pela criação, no norte de África, de um ameaçador califado fatímida, de obediência xiita. Desde muito cedo, portanto, que o Al-Andalus, refúgio de uma dinastia perseguida, se constitui como uma singularidade no seio do Islão, tal como o reino cristão asturiano representa, de facto, um caso insólito no interior da cristandade europeia da época, quer pela insistência dos seus soberanos em assumirem-se como herdeiros da monarquia visigótica - e, por essa via, do império romano - , quer pelas complexas relações que mantém com a vizinhança muçulmana. A Península Ibérica dos tempos do emirado e do califado de Córdova é a soma dessas duas singularidades. Uma soma difícil de reconstituir, a mil anos de distância. Múltiplas interpretações têm sido avançadas a partir do pouco que se sabe das relações que mantiveram os diversos grupos que então partilharam a Hispânia: os muçulmanos árabes e berberes, os descendentes de convertidos ao Islão (muwalladun), de estatuto social mais baixo do que o dos muçulmanos de nascimento, os judeus, os cristãos do Norte e os cristão arabizados mas não convertidos, que receberam a designação de moçárabes. O mais que se poderá dizer é que entre a visão tradicionalista de duas Espanhas estanques, em guerra permanente, e a visão idealista de um paraíso efémero, onde as três religiões do Livro teriam coexistido em perfeita harmonia, a verdade deve situar-se algures a meio caminho. Após uma sucessão de reinados relativamente breves, a monarquia asturiana vai reforçar-se consideravelmente durante o longo reinado de Afonso II, que governou entre 791 e 842. Cria uma administração eficaz, centralizada em Oviedo, e dirige várias expedições contra os muçulmanos, tendo chegado a saquear Lisboa. Procurando reproduzir o legado visigótico, rodeia-se de uma verdadeira corte, cria uma chancelaria e nomeia condes para a administração das várias circunscrições em que se divide o reino. É também no seu reinado que ocorre um acontecimento de perenes consequências: a "milagrosa" descoberta do alegado túmulo de São Tiago, na diocese de Iria. Visando tornar Oviedo uma capital digna do mitificado passado visigótico, Afonso II manda ainda construir um grande número de edifícios civis e religiosos. Mas estes esboços de civilização, prosseguidos no final do século IX por Afonso III, nunca deixarão de parecer um pouco toscos face à opulência de Córdova, que, no tempo do primeiro califa, era considerada, dentro e fora do islamismo, "a jóia do mundo", com as suas mesquitas e palácios, as suas dezenas de bibliotecas, os seus trezentos banhos públicos e as suas ruas iluminadas à noite. O renascimento asturiano é levado ao apogeu no reinado de Afonso III (866-910), que fortificou a fronteira do Douro e "repovoou" - já vimos que este termo tem de ser usado com reservas - Lamego e o Porto, levando ainda os cristãos a instalar-se mais para sul, em Coimbra e Viseu. Confia a Afonso "Betote", avô paterno do marido de Mumadona, o repovoamento do litoral nortenho do actual território português, ao passo que Vímara Peres e Hermenegildo Guterres são respectivamente enviados para Portucale (neste caso a cidade) e Eminio (Coimbra). Estavam assim criados, na segunda metade do século IX, os dois condados mais meridionais da Galiza. O de Coimbra, onde o moçarabismo foi sempre intenso, veio a revelar alguma flexibilidade no seu mútuo relacionamento com Leão e Córdova. E chegaram-nos, também, diversas evidências de conflitos entre os próprios condes de Portucale e de Coimbra, que nem sempre apostaram nos mesmos candidatos ao trono leonês. A própria cerimónia de confirmação do testamento de Mumadona constitui um indício destas divergências. É que, excepção feita a S. Rosendo, o condado de Coimbra, como nota A. Fernandes, não se fez representar. Faltou o próprio irmão de Mumadona, Ximeno Dias, que terá morrido pouco depois de 959, mas que nessa data, segundo crê o mesmo autor, era conde de Coimbra. E mesmo que o título já então coubesse a Gonçalo Moniz, bisneto do "presor" Hermenegildo Guterres, a verdade é que também este não compareceu. Ausências tanto mais estranhas quanto eram estreitos os laços de parentesco entre as duas estirpes condais. Mumadona era filha do conde Diogo Fernandes, que possuía terras e uma casa nobre em Viseu, no condado de Coimbra. É mesmo possível que o futuro Ramiro II, que virá a dar incontestáveis provas de apreço pela família de Mumadona, tenha sido criado, juntamente com ela, neste paço viseense. Certo, em todo o caso, é que o rei casou nesta região com uma neta de Hermenegildo Guterres, Adosinda, que mais tarde repudiaria para celebrar segundas núpcias com uma princesa do recém-criado reino de Pamplona (que depois se chamará Navarra). Antes de subir ao trono de Leão, foi a partir de Viseu que Ramiro II governou a Galiza. E refira-se que não era inédito a Galiza ter reis próprios no interior da coroa leonesa. Já sucedera com um filho de Afonso III, Garcia, e voltaria a acontecer com Bermudo II, aclamado rei, em 980, pelos condes galegos, que dois anos mais tarde conseguiram mesmo sentá-lo no torno de Leão.Evocando as relações privilegiadas que Ramiro II teria mantido com o pai de Mumadona, A. Fernandes sugere a possibilidade de que este lhe tenha oferecido o governo do condado portucalense. José Mattoso, todavia, considera mais provável que o título tenha passado de Vímara Peres para seu filho Lucídio, e deste para o seu neto Alvito, transitando então para Hermenegildo Gonçalves e Mumadona. Uma linha sucessória bastante diversa da que defende A. Fernandes, segundo o qual o "presor" de Coimbra, Hermenegildo Guterres, sucedeu directamente a Vímara Peres no governo do condado, que depois teria sido confiado a seu filho, Guterre Mendes, passando, finalmente, para os pais de Mumadona .A ligação familiar entre a família da condessa e a que governava Coimbra faz-se através de um irmão de Diogo Fernandes, Ero Fernandes, simultaneamente avô materno de Hermenegildo Gonçalves e de S. Rosendo. Além do mais, como vimos, a própria Mumadona tinha raízes em Viseu. O que é que se passava, então, nesse ano de 959, que pudesse explicar a referida ausência dos parentes de Coimbra a um acto tão solene e significativo? Parece provável que a presumível disputa se relacionasse com a problemática sucessão de Ramiro II. Depois de um curto reinado de seu filho Ordonho III, subiu ao trono um irmão deste, Sancho I, o Gordo, que era apoiado por Navarra - cuja rainha Toda era sua avó -, mas que contava com a oposição de Castela e que não tardou a ser destronado por Ordonho IV, o Mau. O papel dos condes galegos nesta guerra civil não podia ser mais obscuro. Basta dizer que José Mattoso inclui entre os apoiantes iniciais de Sancho I os condes Paio Gonçalves e Rodrigo Vasques - o primeiro era cunhado de Mumadona e o segundo era seu genro -, ao passo que A. Fernandes dá estes mesmos nobres como partidários de Ordonho IV. É igualmente difícil apurar quais tenham sido as posições assumidas por Gonçalo Mendes e Gonçalo Moniz, condes de Portucale e Coimbra. Se ambos se inclinaram para Ordonho IV, como pretende Mattoso, não é de excluir que tenham "virado a casaca" - pelo menos o filho de Mumadona -, quando Sancho I procurou, e obteve, o auxílio do califa de Córdova. Incontestável é que Ordonho IV destronou Sancho I e que este, acompanhado pela rainha Toda, que era aparentada com os califas, se exilou em Córdova, em 958, onde aproveitou para se tratar, com os médicos locais, de um problema de obesidade que o impedia de montar a cavalo. Em 1959, quando Mumadona confirma a sua doação no tranquilo remanso do mosteiro vimaranense, todo o reino está em pé de guerra. Sancho I acaba de deixar o califado e, atravessando a Galiza à frente de um exército de tropas cordovesas e navarras, expulsa Ordonho IV das Astúrias. Recuperado o trono, regressa à Galiza em 966, desta vez para se dirigir a Coimbra. Se o conde de Portucale lhe opôs alguma resistência no caminho, ou se, pelo contrário, o auxiliou, é coisa que não se sabe. Aparentemente, o objectivo de Sancho I era o de impor a Gonçalo Moniz a sua soberania. E tê-lo-á conseguido, mas a acreditar nos cronistas, o conde de Coimbra, após ter jurado vassalagem ao monarca, mandou-o envenenar. Este último facto deve ser verídico, já que nos chegaram notícias da grande indignação que o crime provocou entre os condes galegos. Quando morre a condessa Mumadona, em 968, tinha acabado de subir ao trono de Leão um filho de Sancho, o Gordo - Ramiro III -, ao qual se irão mais tarde opor os condes galegos, que, em 980, aclamam como rei Bermudo II. Este último, que A. Fernandes acredita ser filho bastardo de Ordonho III e de uma sobrinha por afinidade de Mumadona, Elvira Pais, recebe a coroa leonesa em 982, no mesmo ano em que o temível Almansor dirige a sua primeira campanha vitoriosa, conquistando Saragoça.Governante efectivo do califado desde 976, Almansor invadiu Barcelona em 985 e, dois anos depois, arrassava Coimbra, que ele próprio terá mais tarde confiado ao conde Froila Gonçalves - filho de Gonçalo Moniz -, que foi seu incontestável aliado . Também Gonçalo Mendes se terá submetido ao conquistador muçulmano, mas nos seus últimos anos de vida parece ter devolvido a sua lealdade a Bermudo II, que o nomeia chefe do exército. O filho de Mumadona deve ter morrido por volta de 997, quando Almansor, cruzando o território portucalense, avança até Santiago, destruindo o centro espiritual da Galiza. E é logo no ano seguinte que Mendo Gonçalves aparece, pela primeira vez, com o estatuto de conde de Portucale. Este neto de Mumadona vai-se tornar, como já vimos, o verdadeiro detentor do poder na coroa leonesa. O que então não dissemos, é que a sua disputa com o conde Sancho Garcia de Castela, que igualmente aspirava à tutela de Afonso V, foi dirimida pelo mais inesperado dos árbitros: o próprio filho de Almansor, Abd al-Malik, que segundo José Mattoso, consultou o juiz de Córdova (um cristão moçárabe) antes de conceder o seu voto ao nobre portucalense. Mendo Gonçalves é assassinado em 1008. Talvez por partidários de Castela, talvez por normandos, talvez pelos próprios infanções portucalenses, que já vinham protagonizando a resistência aos muçulmanos e que começavam a pôr em causa a autoridade dos condes. Após a sua morte, o condado passa a ser regido pela sua viúva, Tutadomna, com o auxílio de Alvito Nunes, descendente directo de Vímara Peres. Por que razão, tendo Mendo Gonçalves filhos vivos à data do seu falecimento, nenhum deles lhe sucedeu, é uma incógnita para a qual não existem ainda respostas concludentes. De Alvito Nunes, Portucale passa para o filho deste, Nuno Alvites, que casa com uma filha de Mendo Gonçalves, Ilduara Mendes, unindo assim, no governo do condado, as estirpes de Vímara Peres e Mumadona. Nuno Alvites morre em 1028, e é a viúva que assume o governo do condado durante a menoridade do filho de ambos, Mendo Nunes. É possível que tenha sido este o último conde portucalense, embora a generalidade dos autores considere que o título apenas se extinguiu com o seu filho, Nuno Mendes. Este período final do condado coincide com a ascensão de Fernando Magno, que, tendo recebido em 1035 o governo de Castela, derrotou dois anos mais tarde o último rei da dinastia de Oviedo-Leão, Bermudo III, unindo os dois reinos peninsulares. No início do seu reinado, Fernando I travou duros combates com os condes leoneses e galegos que se lhe opunham, pelo que deveria encarar com natural hostilidade os governantes portucalenses, que certamente apoiaram a facção de Bermudo II. Não parece haver dúvida de que Nuno Mendes ainda usou o titulo de conde, mas é possível que não tivesse direito formal ao estatuto e que exercesse apenas, por nomeação de Fenando I, o cargo de cônsul de um território já então administrado, na prática, pelos infanções.Mas a estirpe condal não se apagou sem um último lampejo. Em 1071, Nuno Mendes encabeça uma revolta contra o rei Garcia, filho de Fernando I, que recebera o governo da Galiza ainda em vida de seu pai. Derrotado e morto, deixa apenas como descendente, que se saiba, uma filha, Loba Nunes, que irá casar-se com o alvasil moçárabe de Coimbra, Sisnando Davides. Com a morte de Nuno Mendes extingue-se a estirpe que durante dois séculos administrou o território portucalense. Mas, apesar da dissolução formal do condado, o conde borgonhês D. Henrique irá tornar-se, em certa medida, o continuador efectivo dessa longa linhagem que remonta a Vímara Peres. Afonso VI, rei de Leão e Castela, dá-lhe em casamento a sua filha bastarda, D. Teresa, e confia-lhe, em 1095, o governo dos territórios do Porto, Coimbra e Santarém. Dois anos depois, Henrique intitula-se conde de Portucale e reivindica o domínio de toda a província portucalense, que se estendera muito para sul dos limites do antigo condado. Após a morte do nobre borgonhês, que terá ocorrido por volta de 1112, é D. Teresa que assume o poder. Mas acabará por ter de o ceder ao filho, Afonso Henriques, que vence os partidários da mãe e do conde de Trava na já referida batalha de S. Mamede, em 1128. Para as sucessivas gerações que habitaram o território portucalense, não existiu uma verdadeira falha de continuidade entre o condado de Mumadona e o de Henrique de Borgonha. Os sentimentos autonomistas dos que acompanharam Nuno Mendes na sua última batalha eram os mesmos que Afonso Henriques, volvidas algumas décadas, encontrou nas principais famílias de infanções, que lhe deram o apoio necessário para forçar a coroa de Leão e Castela a reconhecer a independência de Portugal.